segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Sorria*

Sorria agora, pois em menos de duzentos anos você nunca terá existido. Seus tataranetos não saberão quem foi você. Não restará nenhuma grande obra tua. Nenhum retrato. Nenhuma lápide com teu nome. O tempo terá apagado todos os teus vestígios na terra. Sua vida terá se extinguído junto de tua memória - tudo muito efêmero.

Mas o que terá acontecido com tua nobre alma? A qual lugar maravilhoso ela o terá levado? Como é a vista do alto céu azul? És mais feliz vivendo por cima das nuvens? O que restou do teu corpo, da tua consciência ou de tua personalidade? Conseguistes mantê-la intacta agora que teu ego vive para sempre? Ou será mais uma inocente reencarnação? Viestes em forma de gente, tornasses, enfim, um grande rei, ou nascesses, de novo como outro inseto?

Sorria agora, que posso ver em teu sorriso toda a certeza de quem neste momento está vivo, todo o orgulho de quem existe e faz tanta diferença neste vasto mundo repleto de milhões de outras existências únicas como é a tua. Sorria, pois quando sorri teus olhos estão fechados para o passado antes de ti, tão infinito e tão distante, que no escuro da tua ignorância só a luz de um pequeno futuro tem força para brilhar. Sorria, pois serás tão ignóbil quanto este passado e teu sorriso, um alegre fóssil. Sorria, pois neste teu sorriso está o emblema da soberana natureza, que nunca dá por si; sorria pois quem sorri através de ti é o tempo que tudo destrói, que leva e faz passar, sem nunca recusar a felicidade a quem ignora seu trabalho de apagar, refazer e desfazer mundos, pessoas e certezas, para depois com indiferença soprar o pó das coisas que um dia já foram, e já sorriram.

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A Casa*




           A CASA, SE CONSTRÓI
           E NELA SE CRIA
           VIDA.



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sábado, 19 de dezembro de 2009

A Morte da Bezerra*

Cá estou eu, mais uma vez, pensando na morte da bezerra. Lembro-me de ser criança, estar distraído, com o olhar perdido em algum vazio, e me perguntarem "o que foi, tá pensando na morte da bezerra?"

Hoje em dia, se me perguntassem "o que é filosofia?", eu responderia, "é a morte da bezerra." "O que é melancolia? É a morte da bezerra."

Seria também o caso de aproveitar o ensejo para investigar as explicações sócioculturais, históricas, deste patrimônio mitológico brasileiro, mas para que todo este trabalho, se afinal agora é tarde e a bezerra já está morta, melhor mesmo é deixar a coitada quieta.

Fiquemos nós com a dúvida, sem saber da onde vem essa expressão tão enigmática e familiar. Será um símbolo ancestral do vazio universal? Um estado de alfa involuntário? Stand by do cérebro? Simples distração?  Vai saber. Continuemos carregando este cadáver amigo, companheiro, que, ao longo da vida, apodrece serenamente em nossa consciência.

Mas caso o leitor nunca tenha pensado na morte da bezerra, não há com que se preocupar, este animal morto não irá mudar nada em sua vida, não trará mais sorte nem fortuna, pois não passa de mais um folclore inútil, coisa de quem escreve, de quem não tem mais nada pra fazer.

Coisa de quem vai chegar na velhice e dizer, satisfeito: "Passei a vida inteira pensando na morte da bezerra."

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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Burocracia É Deus*

Ó, deus da burocracia
me manda um anjo
com certificado de divindade
comprovante de residência no céu
e recibo de oferendas recebidas.

Ó, deus da burocracia
me manda este anjo
para ser meu fiador
e permitir que eu siga
por suas segundas vias tortas.

Despacha um santo com urgência
para resolver este meu ofício
se possível até o dia trinta
não abandona esta humilde pessoa física
Ó, grande deus da burocracia.

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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Incômodo*

Ponham as rédeas nos sentimentos
digam para onde devem ir
inventem a vacina contra o desejo
a pílula da conformidade
a lei de como amar.

Já viram  deus,
mas nunca a liberdade
animal selvagem
mostrando os dentes.

Há de ser regra a constância
não mais a contradição
daí então não haverá mais humano
imperfeito, falho, vacilante
meio divino, meio animal
boca, sexo, estômago
consciência e carne.

Não haverá mais conflito
nem vida, nem paixão
apenas mundo, controle
apenas prisão.

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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Histórinha de Dormir*

Era uma vez, lá em Barbacena, um menino bem magrinho, que vendia sorvete na praia.

Era pequeno e já trabalhava. Passava o dia inteiro vendendo sorvete.

E enquanto vendia, aprendia. Sua vida ia se tornando histórinhas de dormir.

Depois trabalhou também numa fábrica de banana, descascando banana. Mas queria mesmo era ser jogador de futebol.

Tinha vezes em que o pai dele demorava mais e quando chegava em casa era gritando, brigando, falando enrolado. O menino que já era calado, se entristecia.

O menino sabia que a vida era difícil.

E quando cresceu, ensinou todas estas histórias.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Enfezado*

Levantou com o pé esquerdo. Era uma terça-feira e ontem havia sido preciso fazer hora extra (não remunerada) no trabalho, em mais uma daquelas reuniões cheias de clichês administrativos e muitas cobranças (detalhe: em plena segunda-feira). Sem contar que o salário ainda não tinha caido e as contas já estavam todas atrasadas.

Não bastasse tudo isso, o despertador estava meio doido, acordou em cima da hora e teve que pegar um trânsito absurdo para chegar no trabalho e encontrar o chefe com a cara daquele tamanho: "É foda, viu!" Mal deu tempo de lavar o rosto e realizar as necessidades matinais - e o vaso ainda fez o favor de entupir. Deixou pra ver isso depois, quando chegasse.

No trabalho, aquele mesmo aborrecimento de sempre, nada ainda do salário cair, a impressora dando problema e a internet ficou pelo menos uma hora sem dar sinal de vida; atrasou o documento que precisava mandar e por isso a firma provavelmente ia ter que pagar uma multa. Mais reclamações.

Final de tarde, hora de voltar pra casa, justo quando costuma desabar uma tempestade tropical e terminar de comprometer o trânsito que já é monstruoso nesse horário.

Chegou três horas depois. Não tinha nada para comer; tinha esquecido de comprar alguma coisa. Um banho: um banho era a salvação. Mas antes precisava "aliviar a consciência" no vaso; quando abre a tampa tem a triste e furiosa lembrança que aquela porcaria está com problema. Tenta a descarga, o balde, o desentupidor: nada. Só piora ainda mais o cenário.

Depois de  inúmeras tentativas, que acabaram de esgotar sua paciência, com repugnância, somada à indignação, à revolta e a todas as coisas que vinha passando, começou a remover o conteúdo com as próprias mãos, enquanto lágrimas de ódio brotavam de suas olheiras, os olhos vidrados, os dentes cerrados e os movimentos cada vez mais convulsos, até que não suportou mais a pressão interna de seus nervos e explodiu em golpes contra o vaso, quebrando a louça, seus dedos, suas mãos, fazendo cortes profundos no braço, até cair e bater a cabeça em uma ponta providencial da privada espatifada, que viria pôr fim a todo aquele sofrimento, àquela vida de merda.

Na medida em que seu sangue e sua consciência iam se esvaindo em meio à imundice do banheiro, sua cólera e seus problemas também iam sendo esquecidos. Tudo o que sentia era uma sonolência boa e tranquíla que aumentava conforme era abraçado pelo frio dos azuleijos - pelo frio da morte, que se aproximava calmamente.

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O Quinto Dia Útil*

Não tem mistério, só complicação: acordou, trabalhou, comeu, dormiu. Eis a rotina diária de todos os dias para um cidadão minimamente assalariado. Pouco encantamento, muito esforço e ainda menos tempo para fazer qualquer outra coisa, do tipo pensar, viver, viajar...

Mas nem tudo é martírio. A felicidade é do tamanho de um crediário e tem o sabor e a simplicidade de um pão com ovo. E esta felicidade tem uma data mais ou menos certa para acontecer: o maravilhoso, o sagrado, o quinto dia útil! Não há evento mais aguardado na vida do humilde proletariado. Quando enfim chega essa época de brevíssima fartura, aí então é um regozijo só - melhor do que andar pelado em casa -, até que a fartura novamente dê lugar às faturas - o que geralmente acontece antes mesmo do décimo dia útil - e tudo retome seu ritmo usual de recessão, apertos e privações, o que, na visão de um devoto trabalhador, não são senão  necessárias provações a enfrentar até que aconteça a próxima virada de mês, e com ela chegue novamente o santo dia de mais um pagamento.

O jeito é trabalhar. É o que há de mais digno a fazer. O que não dá pra ter agora, ou parcela ou deixa pra depois, porque tudo, um dia, vai melhorar. Com as bênçãos do capitalismo, é só ter fé que tudo vai dar certo.

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quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Nuvens*

Onde eu nasci era qause todo dia assim, o céu cheio de nuvens: nublado. Tinha vezes que eu queria muito ir na praia (tinha visita mais que importante, do amor), mas o céu estava sempre muito fechado, com cara de chuva, e a água muito gelada.

Quando vejo o céu assim, tão cheio de nuvens, tenho saudades, porque onde eu nasci era assim.

Depois conheci céus diferentes, sem nuvens, com tempo aberto a maior parte do tempo, achei bonito e gostei da ideia de ter sol o tempo inteiro; dava pra ir na praia todo dia.

Mas com muito sol faz muito calor e muita claridade dá sono; e mesmo com muito sol não dá pra ir na praia todo dia: são muitas coisas, às vezes até mais que o amor, mais que a praia.

Bom mesmo era ter um pouco de céu assim, cheio de nuvens, pra ficar emocionado lembrando, amoadinho, sentindo falta. E outro pouco de céu aberto, com sol queimando, a gente ardendo, mergulhando.

Tudo isso só de olhar pro céu. E ver as nuvens...
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Tatuagem no Pulso*

As agulhas da ideia
perfuram a pele dos pensamentos
e a tinta misturada com sangue
descreve no pulso
a tatuagem indelével
a palavra em grego
que não deve jamais
ser esquecida:

SILÊNCIO.

Tatuagem no pulso
para ver sempre
lembrar a todo momento
do mais sublime ensinamento
dogma, obsessão
verdade, convicção:

SILÊNCIO.

Gravado na pele
certeza de tranquilidade
prática sutil da morte em vida
lugar comum de toda sabedoria:

SILÊNCIO.

O fim monótono da existência
a ausência do verbo
do erro e do ego:

SILÊNCIO.

Vontade íntima
constante e exposta
tatuada no pulso
gravada na pele.

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Como Me Tornei um Babaca*

Foi muito fácil, qualquer um pode. Mas, na verdade, não teria sido possível sem a ajuda dos outros, afinal, é preciso que as pessoas lhe considerem um antes de você mesmo assumir essa tão desprezível realidade - ser um babaca para si mesmo geralmente é mais difícil, pois exige muita paciência para a autocrítica e gosto sádico pela autodepreciação.

Um babaca nada mais é do que uma espécie de louco que não foi excluído e permanece incomodando os indivíduos normais da sociedade. Para ser um babaca você precisa irritar as pessoas, ser inconveniente, chato, e sobretudo não falar a mesma língua que elas, não compartilhar dos mesmos assuntos, soltar frases aparaentemente desconexas, com sentidos de outro mundo, ou ficar em silêncio e ser um babaca do tipo autista ou arrogante.

Para a maioria não é fácil carregar o peso de um título tão distinto, que exige constante apereiçoamento na arte de ser mal quisto, mas o dom geralmente é superior às adversidades e tentativas de se fazer aceitar e levar uma vida normal junto de pessoas normais. O verdadeiro babaca sempre consegue dar um jeito de estragar tudo e causar aquele precioso desconforto geral por onde quer que passe.

Se você também se acha com vocações para ser considerado um autêntico babaca; se muitos já fizeram o favor de te dizer isso, ainda que nas entrelinhas, não se intimide com essa responsabilidade. Para quem carrega o dom de ser um babaca, nunca é preciso muito esforço.

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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Nem Tudo*

A vida é um mar de rosas
Por isso tenho sangrado tanto
O amor é a janela aberta
Por onde entra o ladrão

Não me mostre o espinho
Deixa eu adivinhar
Quando alcançar a rosa

Tudo é tão belo
Nesse imenso jardim
Mas nem tudo se colhe
Nem tudo se beija

Pois tudo acontece
E não se sabe o sabor
Só se conhece o espinho

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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Mais Leve Que o Ar*

Cerca-me do teu carinho
Mas deixa um caminho
Para eu sair
E me sentir sozinho
Quando eu estiver distante
Voltar chorando
Como criança perdida

Você vai se lembrar de mim
Quando tudo acabar
Quando tudo chegar ao fim

Ele não soube escapar
Será tão triste
Como sempre é
Depois só passado

Mas até lá
O quanto custa
Estar soterrado
Por algo mais leve que o ar

Sem nunca saber
Porque tudo é assim
Sem precisar ser
Tão pesado

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A Arte da Tristeza*

Uma cena dessas, tão comum nos dias de hoje, o homem que antes ou depois do trabalho vai para o supermercado, fazer uma comprinha de coisas que estão faltando em casa.

Passeando pelos corredores e prateleiras, empurrando seu carrinho, sossegadamente, estica o braço, alcança um macarrão, molho de tomate, anda mais um pouco, precisa de pasta de dente, sabonete - e umas cervejinhas também, para relaxar em casa no final do dia.

Já no caminho do caixa, dá uma olhadinha na seção de entretenimento, que além de cd's, dvd's, tem livros também: receitas de comida, Sêneca, Ovídio, como se tornar muitas coisas, best-sellers em geral; mas um livro por acaso chamou sua atenção. O título era "A Arte da Tristeza". Começou a folhear as páginas e encontrou algumas frases, do tipo: "A tristeza, quando é um sentimento puro, livre de raiva e frustrações, pode trazer muita calma e tranquilidade; A felicidade é tão inocente! Frágil e iludida, como um adolescente; A lânguida tristeza é o estado de paz mais próximo da verdadeira serenidade."

Interessante. Quem sabe com uma dessas frases não poderia justificar para si mesmo, ou para alguém que o interpelasse, aqueles momentos que, sem nenhum motivo aparente, tinha vontade de ficar sozinho, em silêncio.

Resolveu levar o livreto. Sentiu vontade de mostrar para a esposa. E afinal de contas, era tão baratinho! Jogou ele entre os outros itens do carrinho, e antes de ir embora ainda deu uma olhadinha na seção de eletrodomésticos.

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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Um Dia na Vida*

Primeiro, o relógio avisa que é hora de se levantar. Depois, a toalete, a água no rosto e o espelho, o primeiro contato com a imagem de si mesmo: começam a surgir as primeiras impressões, ainda misturadas com imagens de sonho. Lembramos da vida.

No café já se começa a processar as tarefas, pessoas, eventos, pensamentos, lembranças, sentimentos - movimento de consciência espontâneo, versátil, volúvel e volátil, que arrasta, muitas vezes com violência, a canoa da imaginação até distantes e estranhas margens. Surgem também as primeiras pessoas, presenças vultuosas, emitindo sons e significados mecânicos - esboço de alguma humanidade.

Uma vez de pé, e em plena atividade, perde-se de vista, por muito tempo, o fio de consciência que sozinho se aventura no imenso mar das sensações. Vez ou outra, encontra alguma ilha no caminho, procura sinais de vida, deleita-se quando encontra correspondência, mas de novo é levada pelas ondas. Metáforas. Como se os sentimentos fossem partículas de gás brilhante que tendem a se expandir infinitamente mas encontram as paredes do corpo: efluvescência.

Mais um dia na vida terá se passado, mais um oceano de sentimentos terá se perdido, ou se transformado em poeira invisível, inexplicável, enquanto tudo continuará funcionando fria e perfeitamente: nada terá sido, nem compreendido, nem comunicado.

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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Nirvana*

Ou, A Flor Mais Bonita do Mundo


"Quanta experiência se pôde acumular? Quanto do mundo e de si mesmo foi possível aprender?" Eram pensamentos que existiam fora de seu corpo. Naquele momento, o que o preenchia não era senão uma torrente de sentimentos, como ondas de luz a percorrer toda sua extensão interior. Seu olhar não era de felicidade. Uma expressão de lânguida e comovida tristeza estava prestes a precipitar em sua face. "Tanto amor..."

A luz do dia invadia a casa e sua luminosidade ofuscante abraçava e envolvia todos os objetos que ali haviam. De pé, erguendo diante dos seus olhos uma fotografia presa entre os dedos, o universo aos poucos assumia a consistência de um silêncio infinito - "Tanto amor..." - do qual emergia, crescente, um coral uníssono, que lentamente ia dissolvendo todas as impressões e lembranças enraizadas naquele olhar imóvel. Tudo transformara-se em um movimento estático, vibração contínua, onde palavras não passariam de uma descrição vazia sobre o nada.

"Qual é a matéria do sentimento? O que acontece quando tudo acaba? Restará um último sorriso?" Mas o corpo continuava ali. As mãos continuavam ali. Os olhos permaneciam fixos, imperturbáveis, como a contemplar a flor mais linda do mundo. Quanto tempo terá se passado, na medida em que essa imagem se torna cada vez mais distante, mais calma e mais difusa, até se perder completamente no azul?

Afinal, quais terão sido as sensações extremas desta experiência única? O que dela irá permanecer? São perguntas que, como naquele momento, nunca terão existido; e que nunca poderão ser compreendidas, como todo o sentimento disperso no universo.

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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Tom Noturno*

A noite tem uma hora morta, e a vida que nela se esconde, jaz nos corpos que se entrevem através da misteriosa névoa de nicotina.

Passeando os olhos pelo salão, ao ritmo da música conduzida por mãos maliciosas, não é difícil deparar-se com olhares que prometem o que nunca cumprirão; o movimento de línguas sobre os lábios pronunciam imperceptíveis palavras e desejos obscenos, que só o pensamento mais honesto e altruísta saberá interpretar - afinal, é preciso levar felicidade e prazer a quem os pedem.

Do lado de fora, as ruas silenciosas espreitam com suas luzes amarelas. As conversas que se misturam ao som dos instrumentos trazem em suas letras sempre a variação de uma paixão, a fim de seduzir e encontrar a satisfação. Todos que estão neste salão o sabem, e por isso dançam com prazer, erguem seus drinks no balcão, tocam suas pernas sob a mesa e insinuam a volúpia em cada um de seus movimentos.

Mas nenhuma promessa feita em uma dessas horas mortas pode ser, de fato, esquecida. A não ser que os corpos apaguem o fogo que o olhar, com sua intensidade, fez surgir. Só assim haverá sentido e harmonia no salão, que em sua penumbra, zela com alegria os corpos e promessas feitas, na noite que termina em jazz.

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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Padroeira de Massaranduba*

Numa bela tarde, cinco jovens resolvem pegar o carro e procurar uma paisagem agradável e bom mirante para ver o pôr do sol.

A pista era estreita, mas também não era das mais esburacadas, cortando vales com vilarejos lá embaixo, por onde rios corriam feito crianças a brincar em volta das casas. O carro pegou a saída para uma estrada de terra, que alguns metros mais além tornou-se intransponível: diversas crateras e um lago bem acomodado no meio dela. Não era mais possível chegar a grande pedra no alto dos vales (como premio de consolação, foi oferecido um curioso treinamento de bois, cavalos e vacas para competição).

De volta a via principal, por imperativo da inércia que pairava sobre o grupo em movimento, ficou decidido seguir sem saber exatamente aonde se ia dar. Ninguém reparou na pequena placa que mostrava o nome da cidade.

Depois de quase recuar frente a outro obstáculo, desta vez em forma de policial, como que cobrando esse descaso com o próprio destino, mais alguns quilômetros por entre os amistosos campos de vales e rios levaram ao fortuito município de Massaranduba.

Um movimento comportado murmurava pela cidade, algumas pessoas vestiam uma camisa igual, muitas de branco, o palanque testava o som e um imenso escorregador inflável erguia-se na praça: era a festa da padroeira. Mas como ela provavelmente só apareceria mais tarde, o tempo foi suficiente apenas para conhecer o simpático senhor dono do boteco.

Na estrada de volta, uma extensa fileira de luzes de carros parados e fogos de artifício anunciavam a aparição da santa. Pouco tempo depois, estavam novamente à cidade de onde partiram.

Assim foi a breve viagem. O final dela não leva, certamente, a uma elevada e edificante conclusão, embora conte com a aparição de uma santa; tampouco ao alto de uma colina onde se assistiria ao pôr do sol - a não ser que sejam válidas as modéstas alturas de um escorregador inflável, com vista privilegiada para um palanque -, mas talvez, como premio de consolação, seja o bastante para desfrutar de um rápido momento de distração, em meio a bois, vacas, vales e rios.

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Release: El Coiote*

Thiago Medeiros, também conhecido como Coiote, principiou cedo sua trajetória no mundo musical. Ainda em Itanhaém, cidade do litoral sul de São Paulo, onde cresceu, batalhou para realizar o sonho de comprar uma bateria e formou na adolescência sua primeira banda, o No Be Quiet, fazendo um som pesado com seus amigos. Autodidata, seguiu aperfeiçoando-se em seu instrumento, enquanto formava outras bandas, e chegou a tocar com a Orquestra Jovem da cidade.

Uma vez em São Paulo, desde 2005, continuou seu trabalho com a música, agora em um estúdio de ensaios, localizado na Teodoro Sampaio - não por acaso, a avenida com maior concentração de músicos e lojas de instrumentos da capital - e assim, sempre envolvido dos pés a cabeça no universo sonoro, prosseguiu ampliando sua experiência e participando de novos projetos. Foi integrante de bandas conhecidas no cenário underground de São Paulo, como Sagitta, Distort, Mister Lúdico e os Morféticos, e com algumas lançou LP's, demos e outros trabalhos independentes. Em 2008, foi o baterista da turnê com o Viper, banda de renome internacional, e atualmente toca com o Circo Motel.

Neste novo projeto solo, Coiote mais uma vez investe o peso e energia da sua batera em outra vertente do rock, mas desta vez assume, além das baquetas, o vocal e a guitarra. Em Sete Chaves e Eu Sei o Que Você Quer, as duas primeiras músicas lançadas no MySpace, foi responsável não só pela composição, mas também pela captação, produção, mixagem e masterização das faixas, nas quais ainda contou com a colaboração de Marquinhos Du na gravação de algumas guitarras e Rafael Guedes no baixo e sintetizadores.

Vagando solitário pelo deserto, ou quebrando tudo no cenário underground paulistano, o Coiote segue desbravando sua trilha musical, mostrando toda sua garra, rock'n'roll e diversão: oh yeah!


Confira o som do Coiote no MySpace: www.myspace.com/elcoiote


(Release by Bité*)

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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Crescente*

I

A lua aí
também sorriu?
Você foi ver
te fez lembrar?
Sabe o quê:
vontade minha
carinho seu
saudade sua
presente meu.

II

No céu, entre nós
nasce outra vez
a terna promessa
e o mesmo sorriso.

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Caixa de Sapato*

O despertador do celular tocando: uma e vinte da tarde. Com a vista ainda embaçada, o mundo aos poucos vai sendo identificado. Chegar até o banheiro e lavar a cara, eis o primeiro desafio do dia, têm pessoas dormindo por todos os cantos do cômodo minúsculo, espalhadas em cima de colchões, é preciso passar por cima sem pisar em ninguém e ainda desviar da bagunça pelo chão. Com os pés, o primeiro a levantar acorda o moribundo dormindo do lado da cama: "Vai almoçar?" Mais parecem dois zumbis emergindo de uma multidão de cadáveres.

Seguem dali até o boteco no próximo quarteirão. Entre a multidão que atravessa a faixa, os dois parecem ser os únicos a estarem sendo agredidos pela luz do dia. "Dois pf's." O cafézinho é grátis. Café da manhã e almoço, daqui a duas horas começa o trampo, ainda dá tempo de voltar pra fumar e ouvir um som.

Oito horas de labuta - e alguma bagunça - depois, o ordenado do dia ainda dá pra fazer um lanche, mas não sobra muito pra sair ou fazer qualquer outra coisa, portanto, só resta voltar àquela caixa de sapato perdida no meio da cidade, encrustrada entre outros cubículos, povoada de criaturas do submundo tentando sobreviver no meio urbano.

Mas a vida ordinária também tem seus requintes. Estando entre amigos, se pode desfrutar de toda liberdade possível dentro de um espaço reduzido e uma rotina menos comum, mas igualmente pesada. Diversão também faz parte da sobrevivência. O som e a fumaça vão continuar rolando a noite inteira, embalando alguma loucura e muitas risadas, outros vão chegar, interagir, até quase amanhecer de novo - só na juventude a vida parece poder ser consumida e queimada diariamente, para depois ressurgir das cinzas, com a cara amassada, os olhos esbugalhados e a voz rouca, mas ainda de pé e respirando.

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segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Meia Luz*

"Algumas pessoas se apaixonam e tocam o céu, outras se apaixonam e encontram clichês". As luzes noturnas da cidade entravam pelas portas abertas da sacada e, à meia luz da sala, apenas os contornos eram visíveis. "Você poderia, querida, mostrar-me algo infinitamente interessante?"

Os lábios úmidos, o brilho de seus olhos na penumbra - o traço escuro que na horizontal deixava adivinhar sua boca entreaberta. Bebeu mais um gole de vinho, olhou para as luzes que vinham de fora, mexeu no cabelo, levando algum tempo para que respondesse a pergunta.

"Talvez nós dois estejamos entre o céu e o clichê." Mais vinho. "Mas o que poderia ser assim tão interessante?" Ao dizer isso, inclinou levemente o ombro esquerdo, deixando cair a alça de sua blusa. Jogou a cabeça para trás, soltando o longo cabelo. Seu seio ficara suficientemente exposto.

"Tens razão, o real interesse está sempre no desejo." No chão onde estavam, de frente para a mulher que agora movia os ombros ao som da música tocando, provavelmente de olhos fechados, não teve certeza se havia de fato pronunciado aquelas palavras e fitou mais uma vez a delicada linha que delineava a curva entre o pescoço e o ombro, sem perceber que sua mão já quase tocava os fios do cabelo solto que pendiam de sua nuca.

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Brejo Bonito*

Me leva pro brejo, amor
Lugar que eu nunca vi
Tem lagoa pra banho
Quanto morro pra subir
Montanhas tão rochosas
Sobe e desce de colinas
A vaca já foi pro brejo
Pois eu também quero, amor
Lá tem árvore ainda
Tanto tipo tão diverso
No verde pasto tão bonito
Brilha um brejo nunca visto

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quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Menos Energia*

De uma vez por todas, vamos tentar esclarecer essa coisa de "energia". Quem já não ouviu por aí algo do tipo, "Esse lugar tem uma energia estranha", "Fulano tem uma energia muito boa", "Senti uma energia negativa"? Posso estar enganado, mas isso é um tipo de fé oriunda das cada vez mais presentes explicações esotéricas do mundo.

A religiosidade moderna incorporou no seu modo de ver as coisas o novo misticismo da chamada Nova Era - que é, basicamente, o "resultado espiritual" da miscelânea cultural do século XX -, de modo que hoje em dia somos todos uma espécie de receptor místico, transcendental e espiritual, que circula por aí trocando e recebendo energias, com informações tão ricas que é possível até saber o que a pessoa comeu no almoço (ou será nosso olfato trabalhando sem que percebamos?).

Tá lá, pode pegar qualquer livro de sociologia que passe pelo tema para encontrar o desenvolvimento energético da nossa alma. Mas, além da sociologia, outras disciplinas podem dissolver um pouco mais essas influências (termo esse, inclusive, que nasceu em nosso vocabulário junto com estas visões de mundo) místicas. Peguemos a semiótica (ciência que estuda a construção dos significados), ou qualquer outro tratado que lide com a percepção e cognição humana, para que a gente entenda melhor como funciona o nosso jeito de perceber as coisas e pessoas.

Mas ninguém vai ter saco de ler um livro inteiro só pra isso, então é muito mais fácil chamar de energia o que acontece e a gente não sabe explicar; por isso essa coisa de energia é mais o caso de uma preguiça do nosso entendimento, que aliada a mania de superstição, vira uma realidade. Chega a ser até uma irresponsabilidade, sair por aí espalhando impunemente o que nem se teve o trabalho de tentar entender, pois, em todo o caso, vale a regra, "afirmar é preciso, saber não é".

As pessoas têm um negócio chamado intuição. Nossos sentidos estão aí, alertas a qualquer movimento, a todos os símbolos, mesmo quando achamos não estar prestando atenção, capturando uma infinidade de estímulos (imagine-se naquelas avenidas de Tóquio completamente dominadas por anúncios luminosos), percebendo uma série de coisas, sem que a gente normalmente se dê conta; em outras palavras, nossos sentidos, visão, olfato etc., estão, involuntariamente, trabalhando o tempo todo. Mas a maioria desses estímulos não chegam ao nosso grandioso entendimento, ou seja, não tomamos consciência de tudo o que acontece, caso contrário sofreríamos uma sobrecarga, um colapso mental (a menos que passemos a usar mais o potencial do nosso cérebro, talvez), e sairíamos correndo surtados pelas ruas - um caso parecido com o fenômeno da information overload, o excesso de informação que nos deixa num estado meio catatônico, sem saber direito o que fazer com tanta informação.

É aí que entra nossa intuição, pois ela é o primeiro estágio do nosso entendimento: o que não se torna compreensível à nossa mente consciente permanece como informação inconsciente, sob a forma de intuição.

O esquema é mais ou menos o seguinte: nossos sentidos capturam os estímulos, que podem ou não virar um conhecimento, algo que a gente possa falar: "Ei, isso existe e é assim". Resumindo, a intuição é a informação que não virou entendimento, permanecendo apenas como estímulo sensorial.

Mas o que isso tudo tem mesmo a ver com a energia mística? Vamos dramatizar uma situação: beltrano chega numa praia, seus sentidos capturam o azul turquesa do mar, a brisa refrescante que sopra em seus cabelos, a luz do sol que traz calor ao seu corpo, e diz: "Esse lugar tem uma energia tão boa". É óbvio! O sujeito esteve sendo intensamente estimulado o tempo todo, mas não ia estragar todo o clima paradisíaco elencando e descrevendo suas percepções, que não foram conscientes e permaneceram apenas como sensações gostosas. É a mesma coisa que encontrar um desafeto na balada, de cara fechada, frases nervosas e provocativas, braços cruzados, ar de desprezo e soltar: " Ai, que energia negativa dessa menina".

Chamamos de energia os símbolos, significados, que, por qualquer motivo, não podemos explicar. Estamos interpretando coisas o tempo todo, só que geralmente não percebemos isso.

O ser humano se define por sua capacide de atribuir significado às coisas e constituir uma linguagem a partir disso. A música e o insenso "energizam" os lugares porque são estímulos agradáveis à nossa percepção. O que existe, então, não é a energia, mas sim o ato, o estímulo e a percepção. Pensamentos positivos atraem coisas positivas na medida em que determinam nossos atos e esses passam a ter uma significação positiva, o que proporciona maiores chances da percepção destes terem uma recepção, ou interpretação, igualmente positivas de quem as recebe. Inferimos conteúdos que não foram ditos. Interpretamos o que comemos, o que vestimos - significamos até quando não queremos significar nada.

Pode-se, inclusive, dizer que esse é um dos traços do que atualmente se chama de economia de trocas simbólicas, graças ao valor que o significado, a representação e o símbolo, por si só possuem. Um exemplo disso é que muito dificilmente alguém irá carregar consigo todo o dinheiro que possui; basta que sua conta no banco mostre um valor numérico na tela e que este seja simbolicamente transferido para outro lugar, não havendo necessidade de se transportar materialmente centavo por centavo: o que vale é o valor simbólico.

A energia é um recurso cada vez mais escasso em nosso planeta. Não devemos, portanto, consumi-la inconsequentemente para satisfazer nossas necessidades místicas. Então, antes de dizer que sentiu uma "energia estranha", que tal parar um pouco e prestar mais atenção nos estímulos que estão acontecendo ao seu redor; para isso, é preciso deixar a preguiça de lado e se esforçar para compreender os símbolos e significados que se escondem diante do nosso nariz: "as coisas conversam coisas surpreendentes..."

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quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Observatório*

O mundo é o resultado do autoconvencimento. É possível convencer a si mesmo de que se é uma abelha, e sair pelo mundo polinizando amor. Mas, se ao invés disso, o autoconvencimento serve para afirmar a superioridade de si mesmo, daí então surge um líder, funda-se um partido, a população é igualmente convencida, e o mundo vira mais uma vez o palco devastado por uma guerra. É possível justificar qualquer coisa, e o homem possui o dom de criar verdades, através da exímia arte de convencer a si mesmo. Da mesma forma que não existe objeto sem um sujeito, o sujeito que ama vê suas vontades projetadas no ser amado, acabando por amar a imagem criada por si mesmo; da mesma forma que uma flor não é bonita ou feia, sendo apenas um objeto da natureza, os olhos veem nela beleza - o nome que se dá às coisas que agradam os sentidos do sujeito. Assim, é impossível entender o mundo sem que esse seja um reflexo do que achamos dele; o que experimentamos não é nada se não uma extensão da nossa forma de entender o mundo, um objeto sempre recriado de acordo com o ponto de vista do observador. Se este observador é uma zebra, um mundo listrado é criado a imagem e semelhança da zebra que o criou. Se o observador é uma abelha, o mundo estará repleto de maravilhosas flores. Mas, se este observador é o homem, as possibilidades são infinitas: basta que ele se convença de algo para que o mundo se transforme nesse algo, repleto de zebras, abelhas, guerras, amores e o que mais se desejar e puder ser justificado. Os otimistas veem coisas boas acontecendo, os pessimistas veem coisas ruins acontecendo, os ufólogos veem alienígenas pelo espaço, os esotéricos veem energias sendo transmitidas, os espíritas veem almas penando, os religiosos veem deus existindo, os cientistas veem a matéria se transformando... Basta que se convença.

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Intragável*

Por telefone, mais uma vez, lá estava ela ouvindo as lamúrias de seu amigo, um jovem desempregado: - Larga disso! Você reclama demais. As coisas não aparecem fáceis assim, tem que persistir, esse pessimismo não vai te levar a lugar nenhum. Do outro lado da linha, o rapaz, ansioso, apaga com o sapato o terceiro cigarro consecutivo. O que sua amiga lhe diz é o que as outras pessoas a quem costuma recorrer também lhe dizem, mas ele é o infeliz proprietário de um desses ânimos inconstantes, que variam como um plasma viscoso, uma hora preenchendo o lado da euforia, para instantes depois preencher o lado da disforia, e embora admita com muita relutância os conselhos que ganha, assim que desligar o telefone irá deixar-se levar novamente pelo embalo de suas frustrações. Fica mais alguns minutos na linha, escuta a amiga discorrer sobre histórias da vida alheia e se despedem. Sua namorada não virá esta noite, vai ficar em casa estudando. Tenta se distrair, pensar em coisas boas. Liga a TV; desliga a TV. Resolve telefonar para outro amigo: - Cara, nem dá, amanhã vai ser a maior correria. Depois a gente se fala. Abraço! Sozinho e desconsolado, o rapaz vai se deitar, chorando.

Ela, por sua vez, recebe o telefone de uma amiga; em dez minutos está pronta. Liga para chamar o amigo, mas ninguém atende. As duas saem, encontram outras pessoas, até conversam sobre o caso do rapaz: - Mas isso é fase, eu também já passei por uma dessas; tem que aguentar firme e pensar positivo, aí logo as coisas melhoram. E a turma segue noite adentro, rindo das histórias que a moça contava.

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sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Olhos Abertos*

Muitas possibilidades permeavam as salas em que trabalhava, o ônibus que o conduzia, as ruas por onde andava e as pessoas com quem mantinha relações. Era normal, portanto, que se dedicasse constantemente a ponderar todas elas, na tentativa de se aproximar da recepcionista de cabelos longos e lábios pintados, da moça que sentava a sua frente todas as manhãs com os ombros e nuca expostos - muito embora tivessem sido raras tais aproximações.

Para os olhos escondidos atrás dos óculos, no entanto, não existia amores platônicos, impossíveis - todas as formas eram capturadas e as texturas, consumidas, voraz e visualmente. Por mais distantes e inacessíveis que fossem durante o dia, nenhuma curva inocente dos caminhos percorridos deixaria de ser contemplada pela fome de seus sentidos.

- "Para que tantas pernas, meu deus, pergunta meu coração. Porém, meus olhos não perguntam nada..."

À noite, já passava da hora em que habitualmente dormia, estava deitado, mas seus pés se agitavam nervosamente, no ritmo dissonante em que sua mente lhe exibia uma confusão de cenas desconexas, lembranças, acontecimentos do dia, temores, expectativas: um indecifrável emaranhado de significados. A chuva branda que caía do lado de fora, vibrando um chiado tão propício a uma boa noite de descanso, contrastava com os movimentos inquietos do seu corpo, rolando de um lado para o outro da cama.

Abria os olhos, como uma pessoa que está se afogando e busca desesperada por ar, mas a escuridão do quarto também funciona como pano de fundo para os devaneios que não o deixam dormir. Seu pensamento continuava acelerado. Experimentou deixar que as imagens fluíssem sem tentar impedir, controlar ou compreender seu encadeamento frenético. Nenhum resultado. Não houve outro meio se não render-se, às imagens que o instigavam à volúpia e à vígilia, e ao tempo, o único capaz de lhe trazer o sono.

Acordou com a estranha sensação de que permanecera a noite inteira com os olhos abertos.

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terça-feira, 18 de agosto de 2009

A Primeira Vez*

Aquela era a terceira ou quarta vez que se encontravam. Costumavam marcar uma cerveja no final do dia, o que de certa forma contribuia para amenizar as inibições iniciais entre dois recém desconhecidos, enquanto lentamente se descobriam e criavam intimidade para conversas menos acanhadas.

Depois de pelo menos quatro garrafas, o diálogo já se encaminhava naturalmente, com maior liberdade e espaço para um humor agradável, consumando a alegre afinidade do casal e permitindo trocas de carinho cada vez mais conscientes.

Contudo, num dado momento em que muitos assuntos haviam se esgotado, ao invés dos sorrisos espontâneos, emergiu de suas bocas desejosas um intervalo de conveniente silêncio. Fixaram seus olhares, com a deliciosa curiosidade de quem busca descobrir no outro um pouco mais dessa pessoa estranha e fascinante, através do encantamento que acontece na presença de alguém que se admira - na ausência de palavras.

Ela notou em sua expressão o que achou ser um pouco de tristeza. Talvez ele já estivesse cansado e quisesse ir para casa. (Teria se cansado dela?) Perguntou: "Tudo bem? De repente você ficou com um olhar tão triste... Aconteceu alguma coisa?" "Não, nada", respondeu ele com um leve sorriso.

Lembrou-se da primeira vez em que lhe haviam feito aquela pergunta. Estava deitado em sua cama, sem fazer nada, apenas olhando para o teto. Não tivera aula aquele dia, por causa de algum feriado, e embora não soubesse nada do que sentia, provavelmente estava triste porque não veria a menina de sua sala, por quem alimentava um amor ainda totalmente inexperiente. Seu pai, quando o viu no quarto, quieto e sozinho, aproximou-se e perguntou: "Tudo bem, filho? Você está triste com alguma coisa?" E ele, do mesmo jeito, havia respondido: "Não, nada..."

A bonita mulher, que tão cordialmente continuava o observando, não poderia desvendar nele esse olhar que trazia a marca do que talvez tenha sido o desabrochar do amor em seu peito, e também de sua primeira tristeza, sem saber que tudo o que aconteceria depois em sua vida afetiva seria uma variação desse olhar.

Enternecido por ela, que o fitava ansiosa e que acabara de reconhecer em seu semblante aquele dia escondido no passado, pegou-lhe as mãos, sugeriu que ficassem mais um pouco e convidou-a para que se encontrassem outras vezes.
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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A Última das Horas*

No meio da multidão está o rosto de uma pessoa, entre centenas de outras pessoas, seguindo pelas calçadas alvoroçadas de pernas, por dezenas de ruas que cortam espaços completamente preenchidos de prédios.

Toca o celular: "Oi, amor. Na rua. Não, não demoro. Beijo."

A música volta a penetrar por seus ouvidos, calando o intenso ruído do mundo lá fora, misturando-se a vagos pensamentos disformes, sobre a mulher, a vida, o trabalho, evocando lembranças interrompidas continuamente por vozes, imagens, e fazendo com que tudo se condense em um anestesiante estado de distração.

Olha o relógio - está atrasado -, enquanto um leve tumulto passa desapercebido do outro lado da rua. É tudo muito rápido. De repente, simplesmente deixa de existir. Pessoas começam a correr, assustadas. Alguns minutos depois, aglomeram-se curiosos, gritos surgem pedindo socorro, um homem foi gravemente ferido, parece estar morto, deve ter sido baleado, atiraram do outro lado da rua, assaltaram uma loja de roupas.

A ambulância demora, as pessoas voltam a caminhar nervosas pelas calçadas, o ruído que por um instante cessou volta a sua intensidade normal, os médicos chegam, examinam o corpo, é tarde demais, não houve chance, morreu na hora, o tiro atravessou um órgão vital, não deve ter sentido dor, talvez nem tenha percebido que morreu, fulminante do jeito que foi, não dá tempo nem de lembrar que um dia esteve vivo.

No restaurante a três quadras dali, uma mulher espera em vão por seu marido.
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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Vaso*

Em sua pequena casa, haviam vasos de flores espalhados pela sala, cozinha, e tinha o privilégio de poder contar com uma humilde varanda, seu espaço predileto, para onde suas pernas o levavam espontaneamente, junto de outras flores e de sua planta preferida: um pé de morango.

Há pouco, havia comprado um vaso para receber mais uma companheira e o posto na varanda, ao lado de seu querido morangueiro. Era preciso conseguir tempo, tempo para morangos, flores e vasos vazios.

Dias depois, passando pela feira no caminho de seu trabalho, reparou numa senhora que naquela manhã ocupava um pequeno espaço entre as barracas, expondo uma única flor sobre um pano branco estendido no chão.

"Bom dia, senhora. Sua flor é muito bonita. Estranho nunca ter visto a senhora vendendo flores por aqui."

"Estou sempre de passagem, meu filho. Vez ou outra, quando nasce uma flor no meu quintal, trago ela para enfeitar a vista das pessoas."

Infelizmente, ele não poderia levar consigo a vistosa flor da senhora. Quem sabe mais tarde, quando estivesse a caminho de casa. Lamentou-se, explicou à mulher e partiu, vendo em seu rosto um terno e inquietante sorriso.

Saiu afoito do trabalho em direção à feira, ansioso por encontrar o pano branco estendido no chão, mas a senhora não estava mais lá - havia levado sua flor embora, ou entregue a um estranho.

Chegando em casa, suas pernas o levaram espontaneamente à varanda, para aproveitar os últimos raios de luz do dia junto de seu morangueiro. Sentou-se no chão, um pouco inquieto, e encostou suas costas e cabeça na parede, olhando para o vaso vazio na sua frente. Fechou os olhos, ternamente, respirou fundo e deixou escapar o ar.

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quinta-feira, 23 de julho de 2009

Fluxo*

A ideia caminha na praia e se encanta pela maré
que ora avança, ora recua
calma ou bravia
levando a espuma branca
trazendo troncos
algas, peixes afogados.

A ideia reconhece em si a maré
que ora avança, ora recua
calma ou bravia
levando pensamentos brandos
trazendo triste
palavras, do peito cansado.

A maré não ouve nem vê a ideia
que ora avança, ora recua
quebrando o silêncio
com seu rugido grave.

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terça-feira, 7 de julho de 2009

Banho Quente*

Um belo banho quente, era tudo o que precisava. Quem sabe depois não teria recobrado suas forças o suficiente para sair com o pessoal.

E assim foi. Mas enquanto esteve em seu apartamento - pequeno, mas bem aparelhado, conseguido a duras penas - não lhe faltou tempo para se admirar. Sua vida era exatamente como imaginava que seria quando ainda estava na faculdade.

Tomou seu relaxante banho quente, arrumou-se com suas melhores roupas e saiu. Divertiu-se horrores naquela noite. E no resto do fim de semana ainda encontrou tempo para pôr em ordem o que precisaria fazer durante a semana.

E então, de novo a segunda, o trabalho, o trânsito, a correria - mas nada que com sua energia e vocação não fosse conseguir se sair bem, pois naquele momento só havia uma coisa capaz de lhe causar um verdadeiro incômodo: a mania de piscar viciosamente o olho esquerdo quando não conseguia controlar muito bem seu nervosismo. Cada vez mais frequentemente vinha apresentando esse tique. No entanto, resolveu não dar muita atenção; seria, provavelmente, apenas o resultado de um estresse passageiro - que logo se juntou a uma preocupação e ansiedade constantes.

Um banho quente, era tudo o que precisava. A hipótese de mudar seu estilo de vida e de alguma maneira se distanciar do que havia planejado para si era impensável. Tornou-se uma pessoa explosiva. Irritava-se por qualquer coisa. Suas relações baseavam-se em pequenas, ou grandes, agressões, o que não impediu que conhecesse alguém e com esse alguém se casasse. Teve filhos - e a explosão continuou, causando pequenos, ou grandes, ferimentos em todos aqueles que se aproximavam.

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domingo, 5 de julho de 2009

Aniversário*

"Parabéns para mim", engoliu seco. Quase vinte anos se passaram. E o angustiante era sentir que se as coisas continuassem como estavam agora, os anos passariam, mas nada - ou nada de realmente significante - aconteceria.

O último período no colégio acabara há pouco e à sua frente o futuro era indefinido como uma névoa intransponível. Sentia-se perdido nela, chorando como um menino.

Durante o dia, essa névoa se estendia por seus movimentos incertos, aos quais não conseguia dar um objetivo que o alegrasse de fato.

Esperar que alguma coisa de repente surgisse no caminho e alterasse sua falta de rumo dividia sua cabeça com anseios de fazer qualquer coisa, como viajar, arranjar uma namorada, conseguir um trabalho, comprar um carro. Mas tudo isso era muito fácil de imaginar e difícil de pôr em prática, como ele sabia muito bem, nada cairia do céu.

O que fazer? Era essa a pergunta que o aturdia a ponto de muitas vezes não o deixar simplesmente sair da cama. E se nada acontecesse? Outro aniversário chegaria, mas nada teria mudado, nada o teria completado, ninguém haveria estendido a mão que o levaria de volta ao tempo das tardes de futebol na rua, das promessas de beijo que havia no rosto das meninas da escola, dos sonhos que se realizariam...

Mas nunca se pode saber o que vai acontecer em nossas vidas - desde que aconteça. Pode ser de um dia se topar numa pedra e urrarmos de dor. Pode ser de numa esquina se cruzar um olhar e tudo passar a fazer sentido. Pode acontecer de no futuro a gente olhar para o passado e sorrir.

O relógio marcava a hora de levantar. Arrumou-se, saiu de casa e colocou-se a caminhar, mas dessa vez sem pensar muito no que seria do seu dia. Um passo veio atrás do outro. A única coisa importante era que faria o que tinha de fazer naquele momento: pegar o ônibus, entregar os documentos que sua mãe havia lhe pedido, depois voltar e encontrar com seus amigos.

Já perto de seu destino, dobrou a esquina do quarteirão e não viu a notável pedra que repousava bem diante de seu nariz. Topou nela tão violentamente que desequilibrou-se e não conseguiu conter um terrível grito de dor, traduzido pelo palavreado: "Puta merda!!!"

Das pessoas que estavam próximas, algumas riram, outras se assustaram com o grito, mas houve também aquelas que vieram lhe estender a mão. E uma delas, cordialmente, lhe disse: "Acontece".

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Os Outros*

Finalmente, o fim do expediente: cinco horas da tarde de mais uma sexta-feira dos seus quarenta anos de idade.

Até agora havia enfrentado dignamente os trabalhos e os dias ao longo das diversas funções que ocupara em sua vida - mas durante todo esse tempo não conseguira eliminar ainda aquele germe insatisfeito que o obrigava a desejar uma ruptura substancial com um modelo de vida que considerava tradicional e banal demais.

Saiu do escritório e entrou no carro, direto para casa.

No caminho, a idéia de abandonar a cidade e morar em qualquer fim de mundo o sufocava. E a sua família, mulher e filhos? Não, eles não eram o problema; o apoiariam por mais incompreensíveis e penosas que fossem suas vontades. Dinheiro para essa mudança radical também havia o suficiente.

Olhou pela janela do carro e avistou um bar fuleiro na beira da estrada; decidiu parar. Sentou-se num canto do balcão, pediu uma cerveja e olhou para os gatos pingados de rua que acompanhavam um jogo pela tv.

"Largar tudo, ser um ninguém; viver de feijão e farinha, no meio do nada, como bichos, longe dos amigos, sem os eventos que não gostava de ir, sem as facilidades da vida moderna", e principalmente: no verdadeiro isolamento. A vida sendo realmente vivida em sua insignificante, mas preciosa, simplicidade; em sua indiferença como pessoa do mundo, da história; em sua quase inexistência para os outros.

Os outros. Com os quais sempre teve a necessidade de mediação e relacionamento regulados, com receio, cuidado - e carinho.

Seria realmente capaz dessa ruptura? Não, pois não teria mais quarenta anos pela frente para realizá-la - enquanto o germe do ideal insatisfeito irá permanecer, paciente e silenciosamente, corroendo seu interior até que com ele seja enterrado, para depois seguir seu caminho pela terra fértil...

Resignando-se, matou sua cerveja e sorrindo perguntou aos homens: "Quanto tá o jogo?"

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sábado, 4 de julho de 2009

A Festa*

Houve uma festa. Embora tivesse sido convidado, como de costume, deixou-se levar pelas circunstâncias ao invés de comparecer voluntariamente.

O clima era aconchegante e devidamente alegre. A música e o murmúrio preenchiam o lugar por onde se confinavam pequenos grupos de pessoas.

Acompanhou-se de uma bebida e quando necessário participava da conversa de seus amigos. Tinha a irrelevante preocupação de estruturar suas frases de maneira que não fossem vazias ou inconvenientemente profundas demais - afinal, era uma festa e não um debate acadêmico. Esse trabalho o cansava facilmente, e logo se perdia num olhar distante, que não tão inconscientemente procurava por qualquer espécie de epifania mundana. Quem sabe um olhar intrigante? Uma atração...

Nada. Multiplicavam-se trivialidades e sorrisos fáticos. Melhor assim. Definitivamente, não há lugar em uma festa para a misantropia e a distimia alheia - talvez, nem fosse mesmo o caso de assumir este auto-diagnóstico para si. Porquê simplesmente não inspirar a leveza leviana e expirar cordialidade?

Porque sim, um homem se torna aquilo que é.

Porque não, o silêncio não precisa doer tanto.

A festa continua. A bebida e a música trouxeram a distração e distante de todos havia um par de vasos de flores. Talvez fossem uma epifania, talvez fossem um refúgio. Eram lindas - e a beleza tem o poder natural de confortar e comover. Lindas e solitárias, como que esperando a companhia e o calor do olhar de alguém.

Depois desse encontro, a festa acabou.

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sexta-feira, 26 de junho de 2009

Diálogos*

Platão e Buda estão sentados juntos em uma mesa de bar, dessas de metal descartável, a mais ordinária possível.

Platão tem uma perna cruzada sobre a outra e toma cerveja num copo americano. Seu aspecto de estátua é levemente grave; veste a indumentária clássica e é todo pálido como mármore desgastado pelo tempo.

Buda deixa seu cigarro repousado em cima de um cinzeiro; tem estampado em seu rosto um sorriso de serenidade e as duas pernas estão cruzadas sobre a cadeira, em sua postura habitual. Seu corpo é dourado e suas vestes coloridas.

Não conversam muito. Mas é possível perceber que gostam da companhia um do outro e que compartilham uma sutil e silenciosa concordância.

- "Pois é..."

- "Será que chove?"

E assim os dois passam juntos os finais de tarde da eternidade, tranquilamente, a contemplar a vida sentados em uma mesa de bar.

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domingo, 14 de junho de 2009

Quando Chegar a Hora*

Abrir a porta, pisar em casa
Respirar fundo e correr as paredes...

Abrir as janelas, sair na varanda
Fechar os olhos e voltar para dentro...

Te abraçar a cintura, dançar em silêncio
Girando na sala, à luz da tarde...

Desfazer as malas, arrumar os cantos
Descansar as pernas de andar por aí...

Regular o sono, perder as olheiras
Acordar logo cedo e ganhar um beijo...

Viver o presente, acalmar o corpo
Cuidar de fazer e seguir adiante...

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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Expansão*

Acontece de ser maior o sentimento
e não obedecer ao que vem de fora

Por um momento
estar completamente envolvido
por uma visão
como um selvagem nu
que se confunde com o céu azul

Acontece de ser uma súbita expansão
sem limite compreensível

O que foi se não leve existência
emocionada e comovida

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terça-feira, 2 de junho de 2009

O Brasil da Copa*

Já é a segunda vez que me pego pensando e escrevendo em torno de uma futura copa do mundo. Será essa uma intuição ainda não decifrada? Ou será apenas um resíduo subliminar das informações que circulam? Quem sabe, embora não seja essa incógnita o mais importante no momento - deixemo-la para outra ocasião, pois o que interessa agora é falar sobre a copa de 2014, que será realizada no Brasil, em 12 cidades recentemente divulgadas, para alegria geral e felicidade da nação. Ou terão aqueles que desaprovam a realização deste mega evento em solo brasileiro? Eis outra incógnita que deixaremos para depois. Pois agora é hora de imaginar como será a enorme transformação pela qual passará nossas cidades, estádios, estradas e transportes. Há os incrédulos, que por saberem como as coisas funcionam - ou deixam de funcionar - em nosso país, deixam-se abater pela desesperança, como se, por experiência, soubessem que as obras não serão concluídas, ou serão fatalmente condenadas por desvios de verbas e corrupção. É um receio compreensível - e justo. Por isso, talvez, a maior vantagem da copa seja justamente a de não depender exclusivamente de nosso governo; como as obras devem obedecer a prazos e critérios rígidos para que possam satisfazer as condições necessárias para a realização dos jogos, e como vários comitês e países estão envolvidos - sobretudo no que diz respeito à fiscalização e eficiência -, a chance de que tudo não acabe como promessa de campanha é muito maior e mais segura. Talvez a copa do mundo de 2014 traga mais mudanças e melhorias estruturais ao nosso país do que qualquer candidato já eleito; mais do que qualquer política econômica já adotada.

E em se tratando de economia, muitos, assim como eu, já devem estar pensando em poupar um dinheirinho para assistir aos jogos. Deixar de sair no final de semana: "não posso, tô economizando pra copa". Afinal, supondo que a moeda continue a mesma e o capitalismo não tenha sofrido o colapso definitivo, os valores até lá terão sofrido alguns reajustes. Por exemplo: com um bolacha Passatempo custando sete reais e quarenta centavos e uma passagem de ônibus a três e trinta, provavelmente um ingresso não sairá por menos de seiscentos reais e uma camisa da seleção poderá chegar a custar bem uns duzentos e cinquenta reais. Ou seja, uma fortuna! Pelo menos nos tempos de hoje. De qualquer forma, é bom começar a guardar, nem que seja por apenas noventa minutos, mas talvez cheguemos a um estádio sem precisar pegar um ônibus lotado com cento e dezessete pessoas gritando e debatendo-se, depois de horas de fila para comprar um ingresso, e ainda sentar numa boa poltrona, ao invés de se acomodar no humilde e saudoso concretão de outrora, sob o risco de tomar chuvas que não caem só do céu.

A copa é o Brasil do futuro?


terça-feira, 26 de maio de 2009

Chuva na Praia*

Não era preciso saber o destino,
não era preciso que o tempo estivesse bom,
não era preciso falar.

Horas de estrada
de olhar perdido
na paisagem
passando
na janela

Ao encontro de não estar
por alguns dias
andar debaixo da chuva
parar debaixo da chuva

E ver em tons de cinza
céu, nuvens, praia
pássaros
silêncio
o mar respirando
uma brisa fria
sob a névoa da chuva fina.

Sombras caminhando na praia
dentro da névoa
debaixo da chuva fina

Sombras paradas em frente ao mar
pensando em silêncio
respirando a chuva fina

Longe de qualquer coisa
do outro cinza

Distantes
em frente ao mar
tons de cinza
névoa
e uma chuva fina.

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sexta-feira, 22 de maio de 2009

2011*

Decidi escrever essas linhas para me aproximar daqueles que amo e que não mais tornarei a ver. Procurei papel e caneta pelos escombros, e com estas memórias passarei meus últimos momentos, da mesma forma que outras pessoas ao redor do mundo esperam deixar a marca de que um dia existiram, sem, contudo, acreditar em uma posteridade.

Assim como fomos acostumados a imaginar, também achei que o fim dos tempos aconteceria sob a forma de um terrível apocalipse, com anjos das trevas incendiando o mundo, uma invasão alienígena devastando a terra ou mortos-vivos devorando nossos corpos. No final das contas, a devastação foi a mesma. E poucos restaram, ao menos até aonde minha realidade alcança.

A sede, a fome e a doença são menos apocalípticas do que nossos terrores simbólicos e sempre convivemos harmoniosamente com elas, mas não imaginávamos que seus efeitos simultâneos e em larga escala seriam tão fulminantes. Enquanto ainda havia comunicação, soubemos de um vírus, uma gripe, e que providências já estavam sendo tomadas. Depois continuaram proliferando notícias desencontradas por todos os países, até que o pânico se instaurou após uma população inteira definhar até a morte aos olhos de um planeta aterrorizado. Saques, êxodo, violência, suicídio, tudo em escala global enquanto a doença viajava de avião e acabava de infectar os lugares restantes; a água também fora contaminada, e quem não morria com a doença era vítima de suas consequências. Um colapso. Os mais ricos sobreviviam mais tempo, mas nem por isso podiam escapar - a miséria era agora o sistema dominante. Logo, não tive mais notícias dos meus parentes e amigos; estávamos todos isolados em nosso próprio caos. Os dias eram passados ao abrigo das ruínas que restaram de nossas fortalezas de pedra e concreto. Alguns se juntavam; outros perambulavam sozinhos até sucumbirem ao chão das ruas, até serem varridos de vez pela crescente destruição.

Minha namorada e eu fugíamos e nos protegíamos como era possível. Mas, na verdade, não era possível. Não havia proteção, não havia cura e a salvação era uma ilusão detestável - era uma questão de tempo até que chegasse a nossa vez. Mesmo nos momentos finais de desespero, relutei em procurar pelos grupos que se escondiam e sob os quais recaia o mito da sobrevivência, sendo que na verdade o que queriam era proteger dos flagelados as últimas cotas de riqueza que os restara para viver um pouco mais do que os outros. Nunca tive medo de morrer e optei por esperar a morte com a maior tranquilidade e dignidade possíveis, sem implorar por um momento que sempre tivera o seu final previsto; se tivessem havido zumbis e extra-terrestres, permaneceria até a última bala de uma espingarda, por puro lazer, assim como eu e meu amigo fazíamos nas imaginações de nossa infância; ou no caso de anjos inquisidores, aguardaria o veredicto fatal só pela curiosidade do julgamento. No entanto, essa coragem, que não bastava de descrença, não foi forte o bastante, e tive medo quando a vi morrer. Não pela morte em si e pela solidão que me aguardava, mas pela desolação do amor: angústia, desespero, solidão, falta, todos os sentimentos reunidos como os eventos desastrosos que jogaram na cara dos homens a efemeridade humana. Minha companheira havia partido, como todos os outros que amei, e eu restava só numa vida árida, deserta, odiando a espera que não me permitia estar aonde eu desejava estar.

Foi assim que, provavelmente por um desses castigos sem razão impostos a nossas vidas, durei mais uma dúzia de intermináveis semanas, rejeitado pela doença, até que a terrível secura da sede - a única coisa que se move dentro de mim - me trouxesse essa espécie de luz agonizante e trêmula, que brilha no fundo de um calmo vazio e que me permite lembrar por alguns últimos momentos.

Não sei bem por que, mas muito antes de que essas calamidades surgissem como nosso destino definitivo, nunca consegui fazer projeções de como seria minha vida depois de 2011; e, por coincidência, dessa data em diante não pudemos resistir para assistirmos e celebrarmos juntos a mais uma copa do mundo.


Paciente*

Não seria fácil questionar o valor da paciência. É bom que a vida tenha a possibilidade de seguir um ritmo tranquilo. A paciência é a prática do Tempo; é quando se permite que esse determine o acontecimento das coisas. Mas nem por isso a paciência é isenta de sacrifícios; não é uma questão de simples convicção. Pois não é a aceitação do tempo que dá origem e define a paciência: é o estar sujeito. A mesma origem do paciente que agoniza no leito desejando convalescer; do ser passivo, sem possibilidade de reagir; é a mesma origem da doença - o sofrer de uma patologia -; a mesma origem da paixão, da cegueira passional: estar sujeito ao amor por alguém. A origem dessa condição é o antigo conceito de Pàthos, e o que define esta condição é não ser o sujeito dos acontecimentos, do amor e do tempo; é ser passivo, impotente, diante do sofrimento, da doença - ser um objeto da vida, que pode ser manipulado sem que lhe sejam atendidas as vontades, sem que se tenha escolha. Só um sujeito autônomo tem vontade e pode escolher, ao contrário de um doente que está sujeito, sendo objeto do seu próprio corpo.

Como então ter paciência, ser paciente, pode ser uma virtude? Como ser passivo e simplesmente esperar que as coisas aconteçam, como um refém, de mãos atadas, que aguarda e sonha com a liberdade - a liberdade das nossas vontades? Nossos dias não permitem que esperemos; tudo acontece ao mesmo tempo e é preciso resolver, agir, fazer, produzir e ser (que, no caso, é ter), agora e não depois. Não há tempo e não há lugar para a paciência. Esperar, de certa forma, seria como prostrar-se diante da realidade e do destino, ou render-se a forças divinas que estão além das possibilidades humanas.

Mas talvez seja justamente esse o princípio que, ironicamente, nos ajude a compreender a paciência: a aceitação. Não necessariamente a aceitação do destino, ou do divino - isso irá depender das convicções de cada um -, mas o esforço e a humildade para aceitar os nossos limites e os limites impostos pelo Tempo.

Esperar costuma não ser fácil, e deixar que a vida se passe num futuro imaginário - esse tempo virtual que não existe, e por isso, é o tempo onde tudo pode ser, geralmente, bom e perfeito -, enquanto nada acontece, pode ser tão tolo como aceitar uma infalível pílula de esperança, e seguir acreditando por acreditar. Esperar não é ter esperança; a esperança é o ato de esperar. Assim como ter paciência não precisa significar ser um paciente no leito do tempo; ter paciência precisa ser o saber esperar: ser um sujeito do tempo, no tempo.

"A inteligência é boa. A paciência é melhor."


domingo, 17 de maio de 2009

Maculário*


Eu odeio aquela mancha.

Ela é esse lugar
está sempre lá.

Eu sou a prisão
ela é minha realidade.

Só não a vejo no escuro
e então meus pensamentos são manchas:
luta, escarro, dente, sangue
- sorriso e desespero.

Eu odeio aquela mancha
na parede do quarto.

Preciso, mas não há vida fora dela
ela é tudo o que vejo
tudo o que ouço
- é minha náusea.

Ela é o que posso ser.


sexta-feira, 15 de maio de 2009

Açude Velho*

(Far From The Wild)


Busquei água,
busquei a mim mesmo,
busquei paisagem.

Encontrei um açude velho
no meio da cidade.

É bonito: o sol cintilando na água...

Tinha até um pescador - numa jangada
improvisada com pneu.

Peixinhos e passarinhos
mergulhando - bicando a água.

(Sei o nome de muitas coisas,
mas não sei nomes de peixes,
nomes de passarinhos,
nomes de plantas...)

O açude é um lago
e o lago é um mar preso,
mar triste: seu horizonte não vai
até o infinito.
Está cercado.

Agora o sol está baixando
e o lago vai ficando noturno.
Não vejo mais o pescador,
a água não cintila mais.

Vou embora, vou voltar.

E a natureza ficará distante
outra vez.



quinta-feira, 14 de maio de 2009

Caminhada Noturna*

Fui andar por aí
Não se preocupe
Volto mais tarde
Quando o sono bater
Hoje não vou jantar
Precisei ficar sozinho
Pra pensar

Tudo bem que é à noite
Não vão me assaltar
Eu só não pude ficar
E padecer outra vez
Tendo que esperar

Esse barulho que fazem
Não me deixa dormir
E as tardes demoram demais
Na clausura

Minha vida não é
A ignorância alheia
Passo mal, e não vou
Disperdiçar meu carinho
Com intrigas de novela

Mas não chore e não canse
Porque eu volto com certeza
Não estive longe de você
Mas sabe como é
Às vezes é preciso

Quando eu voltar
Esteja dormindo
E então me abrace
Diga que eu demorei
E que acabou:
Estamos sós


Vésperas de São João*

Eram vésperas de São João e o menino não tinha um chapéu de palha. Sua blusinha xadrez, a calça enfeitada de remendos, o lencinho - não bastavam -; sem o chapéu ele não queria dançar a quadrilha da escola.
Sua mãe procurou em tudo quanto foi canto da cidade, mas não encontrou o bendito chapéu. O menino ficou triste, ressentido mesmo, e é dificil ver uma criança assim, calada, desanimada, perdida em uma vontade inocente que nem ela mesma sabe o tamanho.
Então a mãe disse para que ele tivesse paciência e sugeriu que ele fizesse uma promessa para ajudar a conseguir o que ele queria. Prometeu, mais querendo e chorando do que acreditando, e teve que esperar.
E conseguiu! Um pouco antes da festa, um amiguinho que já tinha usado emprestou o chapéu dele e o menino foi satisfeito dançar a quadrilha, com o chapeú de palha, o bigodinho pintado, a blusinha xadrez, o lencinho, a calça enfeitada de remendos e a namoradinha seu par. Até hoje tem as fotos.
E depois cumpriu a promessa: enfrentou a timidez, ficou de pé na frente de todo mundo que ia na igreja, agradaceu o seu desejo que tinha sido realizado e contou para as pessoas como era bom acreditar, ter paciência e saber esperar.
Até hoje o menino lembra, até hoje ele tenta se lembrar...


segunda-feira, 11 de maio de 2009

A Voz do Mar*

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)

Eu nasci na praia,
Na praia sempre vivi
Que saudades eu tenho
Da praia onde nasci

Filho de peixe
Peixinho é
Primeiro molha o pézinho
E cedo começa a nadar

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)

Nas ondas deslizei
E as areias percorri
Nas águas namorei
E o sol me fez sorrir

O amor eu conheci
E como barco vi partir
No fundo não tem medo
De morrer um pescador

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)

Do mar viemos
Ao mar voltaremos
Vida afora
Mar adentro

A vós do mar
Dorival vem cantar
O amor do homem
E a voz do mar

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)

terça-feira, 21 de abril de 2009

O Barco*

Vi de longe a pintura de um homem
Que arrasta sozinho um barco na praia,
Puxando uma corda apoiada no ombro,
Deixando para trás uma trilha na areia.

Parava se livrando do suor,
Protegendo os olhos do sol com a mão,
Virava-se de costas
E avistava o caminho percorrido.

A paisagem era linda e estendia
Seus contornos indefinidamente
- O azul ao fundo,
E os dois lados perdidos à distância.

O barco não seguia pelo mar
- O que se via era  o esforço
Do homem puxando o barco
Nas cores de um belo quadro.


sexta-feira, 17 de abril de 2009

Perdendo o Sentido*

As palavras perdem o sentido e ninguém se importa.
São esquecidas aos poucos
Até desaparecer da nossa boca.

As pessoas perdem o sentido e lamentamos.
São esquecidas aos poucos
Até desaparecer da nossa vida.

Procura-se triste, desesperado
A pessoa que só existe no passado
- Era o único sentido.

Agora não tem palavra
Não tem descanso
Se esconde junto aos significados incompreensíveis.

A palavra morta, que não deixou de existir
Guarda ainda um significado
Saudade, ou amor empoeirado?


O Bem Que Não Fui*

O bem que não fui
Quantas vezes repito
O bem que não fui
Quantas vezes repito
O silêncio que não fui
O bem que soube
Quantas vezes não fui
O bem que eu quis
Quantas vezes soube
O bem que não fiz
Quantas vezes não fui
A paz que sonhei
Quantas vezes não fui
O bem que sonhei
Quantas vezes não sei
As noites que perdi
Quantas vezes repito
O bem que não fui
Quantas vezes repito
O bem que não fui


quarta-feira, 15 de abril de 2009

Sete Anos no Tibet*

Dias atrás, terminei a leitura de Sete Anos No Tibet. Foi por acaso que este livro caiu em minhas mãos; não tinha exatamente a intenção de algum dia me dedicar a sua leitura; honestamente, nem mesmo sabia que havia um livro desta história conhecida pelo filme e quando vi Brad Pitt na capa do livro ainda assim não me senti muito atraído, resistindo mais uma vez em me entregar sem reservas a um best-seller (tenho esse medo bobo e involuntário de ser apenas mais um despreocupado consumidor de produtos que possivelmente tenham sido tenebrosamente elaborados para ludibriar e controlar as massas, principalmente quando se trata de algo que considero tanto, como a literatura).

No entanto, poucas páginas bastaram para me envolver e tive muito gosto em continuar a leitura - é dessas que deixam a gente triste e com saudade quando acabam. Embora essa distinção não seja fácil e esteja definitivamente clara pra mim,  não se trata de uma uma narrativa propriamente literária. O próprio autor, Heinrich Harrer, um respeitado aventureiro, faz essa reserva no prefácio do livro e diz que como não tem nenhuma experiência como escritor, se contentará em descrever os fatos. Realmente, é uma prosa essencialmente descritiva - que provavelmente se encaixa dentro do "gênero de aventura", aonde são feitos relatos de grandes e famosas expedições realizadas na primeira metade do século XX - mas nem por isso é cansativa ou penosa; pelo contrário, essa característica ajuda a visualisarmos as incríveis paisagens, situações e eventos descritos possibilitando que compartilhemos da experiência de um modo muito vivo, como se acompanhassemos de perto as peripécias e dificuldades da árdua jornada numa terra desconhecida, rumo à "cidade proibida", em meio a neve e as altitudes extremas das montanhas do Himalaia.

Além de conhecer um pouco mais sobre o Tibet - do qual, na verdade, eu nada sabia -, o que o livro me possibilitou, e o que achei mais interessante, foi poder pensar, com o exemplo de uma realidade específica, em como seria na prática o budismo como religião oficial. Pertencendo à precariedade de uma vida, individual e coletiva, baseada no cristianismo, e simpatizante de conceitos orientais-budistas, sempre fora fácil pra mim imaginar como seria melhor se nossos valores fossem determinados por um outro ponto de vista, menos belicoso, mais harmonioso, pacífico e individual. Mas, como demonstra a cultura tibetana ilustrada no livro, da mesma forma que a igreja católica, o budismo adotado como religião exerce a mesma função reguladora e opressiva na sociedade e no indivído que as outras instituições religiosas das quais tenho notíca, baseando a obediência à igreja e ao estado em crenças supersticiosas, medo, padrões sócio-econômicos, limitações e outros instrumentos do poder.

É verdade que o autor reforça o caráter pacífico do povo tibetano e outros pontos positivos do funcionamento de sua sociedade; e mesmo dentro de uma de suas inúmeras vertentes, o budismo é considerado como uma anti-religião (o que demonstra sua repulsa à institucionalização de seus preceitos), ou uma religião do indivíduo, mas nem por isso deixa de ser evidente os meandros hostis e insuficientes em que a humanidade se organiza a partir de uma religião, de modo que, para mim, continua valendo a sabedoria que ouvi sendo atribuída a Machado de Assis, "Têm pessoas que confundem amor com casamento e fé com religião", que serve bem àqueles que acreditam ser possível buscar um aperfeiçoamento que os torne pessoas melhores, sem com isso estarem necessariamente sujeitos a uma intermediação alheia e obscura, preservando assim uma relativa autonomia de sua consciência.


terça-feira, 7 de abril de 2009

Limpeza Diária*

Sou uma dona de casa frustrada. Mas não dessas que alimentam a cabeça com a filosofia dos programas da tarde. Meu caso é muito mais complexo: sou dona de casa e sou frustrado, o que são coisas bem diferentes - mas que casam bem.
As mocinhas modernas que lêem este texto não me comprenderão; são independentes demais e sabem que o que vale à pena mesmo é estudar, progredir na vida e ser feliz; não poderiam compreender a profundidade íntima dos labores domésticos; se revoltariam por terem de fazer uma faxina em casa e por isso não têm idéia de quão longe vai nossa imaginação com uma bela vassourada pelos cômodos; não supõem a confidência e os benefícios terapêuticos de lavar a louça e deixar a pia vazia e limpa, sem contar a satisfação final de ver tudo em ordem, bem arrumado.
A frustração não faz parte desse dever. O lar é uma vocação que desde cedo se conhece e só tarde se desenvolve. Mas é muito fácil acabar conciliando as duas coisas, hospedar em casa a vontade de algo que está além e quando nos damos conta já estamos na cozinha tomando chá e assistindo a sérias banalidades na companhia indesejada de uma necessidade latente e não realizada que aos poucos compromete o prazer de se dedicar tranquilamente aos afazeres cotidianos.
Dá trabalho cuidar de uma casa, cuidar de si, manter as coisas organizadas, cada uma em seu lugar; custa enfrentar a bagunça, mas tem de ser feito. Todos passam o dia fora e ninguém irá fazer no seu lugar. 
Se deixar a sujeira toma conta, vira um desamor constante, e só você foi o responsável.


quinta-feira, 2 de abril de 2009

Uma Casa Amarela*

Sei bem do que sinto, tanto que não falo - e assim é melhor.
[Nem poderia, como tentar explicar: 
um repouso que fica escondido do lado da maçã e do cantinho do nariz.
Um cheiro, uma casa e as paredes que pintaremos de amarelo. 
[Tudo simples, em ordem.
Decoramos  a sala do amanhã com pouca coisa e muitas flores.

Às vezes tenho vontade de contar, mas sua presença é maior.
[- Saudade só de sentir saudade...
Não preciso pensar, só ouvir: "Boa noite, amor..."

Depois vou construir quarto, telhado - mas com as mãos vazias,
[esperando o tempo.
Vou armar a rede.

É difícil dizer, mas será tudo muito claro. Haverá janelas e luz do dia.

É difícil dizer, mas tens um rostinho...

E casa nada mais é do que carinho.


St. Anger*



O ódio é o contrário do amor? Não, não lhe tenho amor
É forte demais e o que tenho não é
O contrártio da admiração é o desprezo
Não é bom, mas é preciso senti-lo - é santo
É preciso expurgá-lo, sem prazer
Derramá-lo em lágrima e revolta
Em silêncio, como em prece
Até que se torne você
Até que pertença só a você
Até que sua raiva se torne perdão
Livre de quem trouxe à você
O ódio é o contrário de você
É preciso sentir sem medo
O sono não veio e a noite já passou

segunda-feira, 30 de março de 2009

Sub Specie Aeternitatis*

Sub specie aeternitatis...

Não ignorar o tempo;
Tudo dissolvido na vastidão do passado:

- Aveum! Não sou eterno.

Houve um nada e depois outro nada;
Nesse intervalo, uma intermitência.

Poeira dos séculos, esvanecida
Que não se perdeu, tranformou-se

Anitya, apenas impermanente

Em fóssil, soterrado
Memória perecida.


terça-feira, 17 de março de 2009

Communication Breakdown*




Certa vez, alguém, citando um outro alguém, me disse que os mal-entendidos geram mais guerras do que as discordâncias – ou algo assim -: somente um raio-x das minhas entranhas se contorcendo seria capaz de ilustrar essa  minha dolorosa concordância.

E isso também me faz lembrar o quanto somos reféns da linguagem; sabemos que há algo errado, que deveria ser conversado, mas não sabemos o que é e se realmente é, ou como deveria ser falado, comunicado ao outro, e, quando (não) damos conta, já deixamos que o mal-entendido tenha se estabelecido de vez, por preguiça, melindre ou pelo mero prazer da intriga, covardia etc.  – o que me faz lembrar o quanto tendemos à ignorância. Raramente temos capacidade e paciência para saber e entender. Do contrário, não seria norma a triste conclusão “Afirmar é preciso, saber não é. Assim age um tolo.”

Mas, beleza, no final a gente se arrepende – quando muito –, e tá tudo certo, enterrado com o resto das coisas que o tempo cuidou de destruir.

 “It`s always the same!...”

Sucata*

Da varanda de onde moro, tenho vista privilegiada para um ferro-velho. Passei algum tempo revirando minhas idéias à procura de um mote-inspiração, mas a única coisa que parecia servir a este fim me levava necessariamente àquela paisagem de sucatas, assim como nos momentos de lazer e/ou de um cigarro, era levado, involuntariamente, a acompanhar o movimento do dia: muitos caminhões, carroças e pessoas trabalhando e comercializando tudo de metal indesejado que se possa imaginar; caçambas transbordando de latas, fardos de papel, garrafas, solas de sapatos e sandálias e chinelos, etc. Só o que não sabia era como transformar tudo isso em algo minimamente relevante, que expressasse qualquer conteúdo meu, por mais bobo que fosse, mas que desse a mim mesmo uma espécie de ombro amigo, me ajudando a sair de um longo e incômodo silêncio, daqueles que não permitem reflexão e parecem mais algum tipo de estagnação mental.

Pensei em discorrer sobre o caos organizado do lugar, ou sobre nossa miséria e o lixo que produzimos e que também é o sustento de outros; ou ainda sobre o humilde e pesado trabalho no meio de tamanho entulho, mas que é tão digno como os demais. Enfim, nenhuma dessas abordagens me agradou e tenho náuseas só de me imaginar fazendo um daqueles discursos rançosos, como os que fazem a televisão, que exploram e nos convencem do heroísmo e felicidade que há na simplicidade da pobreza. Essa falsa humildade vende bem como produto em programas de domingo, mostra ao pobre que poderia ser pior e ao rico que deve estar contente por não estar naquelas condições; e, no final, todos se sentem satisfeitos com sua própria piedade e aliviados – não sem alguma culpa - por acontecer ao outro.

Mas a honesta humildade, que talvez nem mesmo tenham aqueles que vivem de recolher o lixo dos outros – e que, se pudessem, possivelmente seriam mais um a se comover com o espetáculo da tevê -, não a possui quem simplesmente se submete ao trabalho bruto, nem pratica esmola ou dá caridade; nem mesmo quem a considera um valor e a deseja, buscando em meio à bagunça de um ferro-velho – do alto de um apartamento... Essa profunda humildade, que se parece com um dom, ou uma revelação, daquelas que só uma grande doença pode proporcionar a um paciente terminal, que de repente descobre a fragilidade da vida e por isso pode amar, puramente, sem se preocupar com as banalidades e imbecilidades que, por distração ou fraqueza, considerava importantes ou inevitáveis e o consumiam diariamente, sem se dar conta de que o que precisava realmente era o carinho das pessoas, de tempo para si, dos amigos, da família, da praia... Dessas coisas que todo mundo faz idéia e que dizem alguns livros, filmes e músicas, mas não passam de historinhas bonitinhas que, além de bobas, são distantes e impossíveis na realidade.  Da mesma forma que é impossível transformar sucata em uma palavra amiga, ou surtos de alucinações hipocondríacas que precedem o sono em uma doença fatal que revele e ensine a verdadeira humildade.