quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Tom Noturno*

A noite tem uma hora morta, e a vida que nela se esconde, jaz nos corpos que se entrevem através da misteriosa névoa de nicotina.

Passeando os olhos pelo salão, ao ritmo da música conduzida por mãos maliciosas, não é difícil deparar-se com olhares que prometem o que nunca cumprirão; o movimento de línguas sobre os lábios pronunciam imperceptíveis palavras e desejos obscenos, que só o pensamento mais honesto e altruísta saberá interpretar - afinal, é preciso levar felicidade e prazer a quem os pedem.

Do lado de fora, as ruas silenciosas espreitam com suas luzes amarelas. As conversas que se misturam ao som dos instrumentos trazem em suas letras sempre a variação de uma paixão, a fim de seduzir e encontrar a satisfação. Todos que estão neste salão o sabem, e por isso dançam com prazer, erguem seus drinks no balcão, tocam suas pernas sob a mesa e insinuam a volúpia em cada um de seus movimentos.

Mas nenhuma promessa feita em uma dessas horas mortas pode ser, de fato, esquecida. A não ser que os corpos apaguem o fogo que o olhar, com sua intensidade, fez surgir. Só assim haverá sentido e harmonia no salão, que em sua penumbra, zela com alegria os corpos e promessas feitas, na noite que termina em jazz.

.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A Padroeira de Massaranduba*

Numa bela tarde, cinco jovens resolvem pegar o carro e procurar uma paisagem agradável e bom mirante para ver o pôr do sol.

A pista era estreita, mas também não era das mais esburacadas, cortando vales com vilarejos lá embaixo, por onde rios corriam feito crianças a brincar em volta das casas. O carro pegou a saída para uma estrada de terra, que alguns metros mais além tornou-se intransponível: diversas crateras e um lago bem acomodado no meio dela. Não era mais possível chegar a grande pedra no alto dos vales (como premio de consolação, foi oferecido um curioso treinamento de bois, cavalos e vacas para competição).

De volta a via principal, por imperativo da inércia que pairava sobre o grupo em movimento, ficou decidido seguir sem saber exatamente aonde se ia dar. Ninguém reparou na pequena placa que mostrava o nome da cidade.

Depois de quase recuar frente a outro obstáculo, desta vez em forma de policial, como que cobrando esse descaso com o próprio destino, mais alguns quilômetros por entre os amistosos campos de vales e rios levaram ao fortuito município de Massaranduba.

Um movimento comportado murmurava pela cidade, algumas pessoas vestiam uma camisa igual, muitas de branco, o palanque testava o som e um imenso escorregador inflável erguia-se na praça: era a festa da padroeira. Mas como ela provavelmente só apareceria mais tarde, o tempo foi suficiente apenas para conhecer o simpático senhor dono do boteco.

Na estrada de volta, uma extensa fileira de luzes de carros parados e fogos de artifício anunciavam a aparição da santa. Pouco tempo depois, estavam novamente à cidade de onde partiram.

Assim foi a breve viagem. O final dela não leva, certamente, a uma elevada e edificante conclusão, embora conte com a aparição de uma santa; tampouco ao alto de uma colina onde se assistiria ao pôr do sol - a não ser que sejam válidas as modéstas alturas de um escorregador inflável, com vista privilegiada para um palanque -, mas talvez, como premio de consolação, seja o bastante para desfrutar de um rápido momento de distração, em meio a bois, vacas, vales e rios.

.

Release: El Coiote*

Thiago Medeiros, também conhecido como Coiote, principiou cedo sua trajetória no mundo musical. Ainda em Itanhaém, cidade do litoral sul de São Paulo, onde cresceu, batalhou para realizar o sonho de comprar uma bateria e formou na adolescência sua primeira banda, o No Be Quiet, fazendo um som pesado com seus amigos. Autodidata, seguiu aperfeiçoando-se em seu instrumento, enquanto formava outras bandas, e chegou a tocar com a Orquestra Jovem da cidade.

Uma vez em São Paulo, desde 2005, continuou seu trabalho com a música, agora em um estúdio de ensaios, localizado na Teodoro Sampaio - não por acaso, a avenida com maior concentração de músicos e lojas de instrumentos da capital - e assim, sempre envolvido dos pés a cabeça no universo sonoro, prosseguiu ampliando sua experiência e participando de novos projetos. Foi integrante de bandas conhecidas no cenário underground de São Paulo, como Sagitta, Distort, Mister Lúdico e os Morféticos, e com algumas lançou LP's, demos e outros trabalhos independentes. Em 2008, foi o baterista da turnê com o Viper, banda de renome internacional, e atualmente toca com o Circo Motel.

Neste novo projeto solo, Coiote mais uma vez investe o peso e energia da sua batera em outra vertente do rock, mas desta vez assume, além das baquetas, o vocal e a guitarra. Em Sete Chaves e Eu Sei o Que Você Quer, as duas primeiras músicas lançadas no MySpace, foi responsável não só pela composição, mas também pela captação, produção, mixagem e masterização das faixas, nas quais ainda contou com a colaboração de Marquinhos Du na gravação de algumas guitarras e Rafael Guedes no baixo e sintetizadores.

Vagando solitário pelo deserto, ou quebrando tudo no cenário underground paulistano, o Coiote segue desbravando sua trilha musical, mostrando toda sua garra, rock'n'roll e diversão: oh yeah!


Confira o som do Coiote no MySpace: www.myspace.com/elcoiote


(Release by Bité*)

.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Crescente*

I

A lua aí
também sorriu?
Você foi ver
te fez lembrar?
Sabe o quê:
vontade minha
carinho seu
saudade sua
presente meu.

II

No céu, entre nós
nasce outra vez
a terna promessa
e o mesmo sorriso.

.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Caixa de Sapato*

O despertador do celular tocando: uma e vinte da tarde. Com a vista ainda embaçada, o mundo aos poucos vai sendo identificado. Chegar até o banheiro e lavar a cara, eis o primeiro desafio do dia, têm pessoas dormindo por todos os cantos do cômodo minúsculo, espalhadas em cima de colchões, é preciso passar por cima sem pisar em ninguém e ainda desviar da bagunça pelo chão. Com os pés, o primeiro a levantar acorda o moribundo dormindo do lado da cama: "Vai almoçar?" Mais parecem dois zumbis emergindo de uma multidão de cadáveres.

Seguem dali até o boteco no próximo quarteirão. Entre a multidão que atravessa a faixa, os dois parecem ser os únicos a estarem sendo agredidos pela luz do dia. "Dois pf's." O cafézinho é grátis. Café da manhã e almoço, daqui a duas horas começa o trampo, ainda dá tempo de voltar pra fumar e ouvir um som.

Oito horas de labuta - e alguma bagunça - depois, o ordenado do dia ainda dá pra fazer um lanche, mas não sobra muito pra sair ou fazer qualquer outra coisa, portanto, só resta voltar àquela caixa de sapato perdida no meio da cidade, encrustrada entre outros cubículos, povoada de criaturas do submundo tentando sobreviver no meio urbano.

Mas a vida ordinária também tem seus requintes. Estando entre amigos, se pode desfrutar de toda liberdade possível dentro de um espaço reduzido e uma rotina menos comum, mas igualmente pesada. Diversão também faz parte da sobrevivência. O som e a fumaça vão continuar rolando a noite inteira, embalando alguma loucura e muitas risadas, outros vão chegar, interagir, até quase amanhecer de novo - só na juventude a vida parece poder ser consumida e queimada diariamente, para depois ressurgir das cinzas, com a cara amassada, os olhos esbugalhados e a voz rouca, mas ainda de pé e respirando.

.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Meia Luz*

"Algumas pessoas se apaixonam e tocam o céu, outras se apaixonam e encontram clichês". As luzes noturnas da cidade entravam pelas portas abertas da sacada e, à meia luz da sala, apenas os contornos eram visíveis. "Você poderia, querida, mostrar-me algo infinitamente interessante?"

Os lábios úmidos, o brilho de seus olhos na penumbra - o traço escuro que na horizontal deixava adivinhar sua boca entreaberta. Bebeu mais um gole de vinho, olhou para as luzes que vinham de fora, mexeu no cabelo, levando algum tempo para que respondesse a pergunta.

"Talvez nós dois estejamos entre o céu e o clichê." Mais vinho. "Mas o que poderia ser assim tão interessante?" Ao dizer isso, inclinou levemente o ombro esquerdo, deixando cair a alça de sua blusa. Jogou a cabeça para trás, soltando o longo cabelo. Seu seio ficara suficientemente exposto.

"Tens razão, o real interesse está sempre no desejo." No chão onde estavam, de frente para a mulher que agora movia os ombros ao som da música tocando, provavelmente de olhos fechados, não teve certeza se havia de fato pronunciado aquelas palavras e fitou mais uma vez a delicada linha que delineava a curva entre o pescoço e o ombro, sem perceber que sua mão já quase tocava os fios do cabelo solto que pendiam de sua nuca.

.

Brejo Bonito*

Me leva pro brejo, amor
Lugar que eu nunca vi
Tem lagoa pra banho
Quanto morro pra subir
Montanhas tão rochosas
Sobe e desce de colinas
A vaca já foi pro brejo
Pois eu também quero, amor
Lá tem árvore ainda
Tanto tipo tão diverso
No verde pasto tão bonito
Brilha um brejo nunca visto

.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Menos Energia*

De uma vez por todas, vamos tentar esclarecer essa coisa de "energia". Quem já não ouviu por aí algo do tipo, "Esse lugar tem uma energia estranha", "Fulano tem uma energia muito boa", "Senti uma energia negativa"? Posso estar enganado, mas isso é um tipo de fé oriunda das cada vez mais presentes explicações esotéricas do mundo.

A religiosidade moderna incorporou no seu modo de ver as coisas o novo misticismo da chamada Nova Era - que é, basicamente, o "resultado espiritual" da miscelânea cultural do século XX -, de modo que hoje em dia somos todos uma espécie de receptor místico, transcendental e espiritual, que circula por aí trocando e recebendo energias, com informações tão ricas que é possível até saber o que a pessoa comeu no almoço (ou será nosso olfato trabalhando sem que percebamos?).

Tá lá, pode pegar qualquer livro de sociologia que passe pelo tema para encontrar o desenvolvimento energético da nossa alma. Mas, além da sociologia, outras disciplinas podem dissolver um pouco mais essas influências (termo esse, inclusive, que nasceu em nosso vocabulário junto com estas visões de mundo) místicas. Peguemos a semiótica (ciência que estuda a construção dos significados), ou qualquer outro tratado que lide com a percepção e cognição humana, para que a gente entenda melhor como funciona o nosso jeito de perceber as coisas e pessoas.

Mas ninguém vai ter saco de ler um livro inteiro só pra isso, então é muito mais fácil chamar de energia o que acontece e a gente não sabe explicar; por isso essa coisa de energia é mais o caso de uma preguiça do nosso entendimento, que aliada a mania de superstição, vira uma realidade. Chega a ser até uma irresponsabilidade, sair por aí espalhando impunemente o que nem se teve o trabalho de tentar entender, pois, em todo o caso, vale a regra, "afirmar é preciso, saber não é".

As pessoas têm um negócio chamado intuição. Nossos sentidos estão aí, alertas a qualquer movimento, a todos os símbolos, mesmo quando achamos não estar prestando atenção, capturando uma infinidade de estímulos (imagine-se naquelas avenidas de Tóquio completamente dominadas por anúncios luminosos), percebendo uma série de coisas, sem que a gente normalmente se dê conta; em outras palavras, nossos sentidos, visão, olfato etc., estão, involuntariamente, trabalhando o tempo todo. Mas a maioria desses estímulos não chegam ao nosso grandioso entendimento, ou seja, não tomamos consciência de tudo o que acontece, caso contrário sofreríamos uma sobrecarga, um colapso mental (a menos que passemos a usar mais o potencial do nosso cérebro, talvez), e sairíamos correndo surtados pelas ruas - um caso parecido com o fenômeno da information overload, o excesso de informação que nos deixa num estado meio catatônico, sem saber direito o que fazer com tanta informação.

É aí que entra nossa intuição, pois ela é o primeiro estágio do nosso entendimento: o que não se torna compreensível à nossa mente consciente permanece como informação inconsciente, sob a forma de intuição.

O esquema é mais ou menos o seguinte: nossos sentidos capturam os estímulos, que podem ou não virar um conhecimento, algo que a gente possa falar: "Ei, isso existe e é assim". Resumindo, a intuição é a informação que não virou entendimento, permanecendo apenas como estímulo sensorial.

Mas o que isso tudo tem mesmo a ver com a energia mística? Vamos dramatizar uma situação: beltrano chega numa praia, seus sentidos capturam o azul turquesa do mar, a brisa refrescante que sopra em seus cabelos, a luz do sol que traz calor ao seu corpo, e diz: "Esse lugar tem uma energia tão boa". É óbvio! O sujeito esteve sendo intensamente estimulado o tempo todo, mas não ia estragar todo o clima paradisíaco elencando e descrevendo suas percepções, que não foram conscientes e permaneceram apenas como sensações gostosas. É a mesma coisa que encontrar um desafeto na balada, de cara fechada, frases nervosas e provocativas, braços cruzados, ar de desprezo e soltar: " Ai, que energia negativa dessa menina".

Chamamos de energia os símbolos, significados, que, por qualquer motivo, não podemos explicar. Estamos interpretando coisas o tempo todo, só que geralmente não percebemos isso.

O ser humano se define por sua capacide de atribuir significado às coisas e constituir uma linguagem a partir disso. A música e o insenso "energizam" os lugares porque são estímulos agradáveis à nossa percepção. O que existe, então, não é a energia, mas sim o ato, o estímulo e a percepção. Pensamentos positivos atraem coisas positivas na medida em que determinam nossos atos e esses passam a ter uma significação positiva, o que proporciona maiores chances da percepção destes terem uma recepção, ou interpretação, igualmente positivas de quem as recebe. Inferimos conteúdos que não foram ditos. Interpretamos o que comemos, o que vestimos - significamos até quando não queremos significar nada.

Pode-se, inclusive, dizer que esse é um dos traços do que atualmente se chama de economia de trocas simbólicas, graças ao valor que o significado, a representação e o símbolo, por si só possuem. Um exemplo disso é que muito dificilmente alguém irá carregar consigo todo o dinheiro que possui; basta que sua conta no banco mostre um valor numérico na tela e que este seja simbolicamente transferido para outro lugar, não havendo necessidade de se transportar materialmente centavo por centavo: o que vale é o valor simbólico.

A energia é um recurso cada vez mais escasso em nosso planeta. Não devemos, portanto, consumi-la inconsequentemente para satisfazer nossas necessidades místicas. Então, antes de dizer que sentiu uma "energia estranha", que tal parar um pouco e prestar mais atenção nos estímulos que estão acontecendo ao seu redor; para isso, é preciso deixar a preguiça de lado e se esforçar para compreender os símbolos e significados que se escondem diante do nosso nariz: "as coisas conversam coisas surpreendentes..."

.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Observatório*

O mundo é o resultado do autoconvencimento. É possível convencer a si mesmo de que se é uma abelha, e sair pelo mundo polinizando amor. Mas, se ao invés disso, o autoconvencimento serve para afirmar a superioridade de si mesmo, daí então surge um líder, funda-se um partido, a população é igualmente convencida, e o mundo vira mais uma vez o palco devastado por uma guerra. É possível justificar qualquer coisa, e o homem possui o dom de criar verdades, através da exímia arte de convencer a si mesmo. Da mesma forma que não existe objeto sem um sujeito, o sujeito que ama vê suas vontades projetadas no ser amado, acabando por amar a imagem criada por si mesmo; da mesma forma que uma flor não é bonita ou feia, sendo apenas um objeto da natureza, os olhos veem nela beleza - o nome que se dá às coisas que agradam os sentidos do sujeito. Assim, é impossível entender o mundo sem que esse seja um reflexo do que achamos dele; o que experimentamos não é nada se não uma extensão da nossa forma de entender o mundo, um objeto sempre recriado de acordo com o ponto de vista do observador. Se este observador é uma zebra, um mundo listrado é criado a imagem e semelhança da zebra que o criou. Se o observador é uma abelha, o mundo estará repleto de maravilhosas flores. Mas, se este observador é o homem, as possibilidades são infinitas: basta que ele se convença de algo para que o mundo se transforme nesse algo, repleto de zebras, abelhas, guerras, amores e o que mais se desejar e puder ser justificado. Os otimistas veem coisas boas acontecendo, os pessimistas veem coisas ruins acontecendo, os ufólogos veem alienígenas pelo espaço, os esotéricos veem energias sendo transmitidas, os espíritas veem almas penando, os religiosos veem deus existindo, os cientistas veem a matéria se transformando... Basta que se convença.

.

Intragável*

Por telefone, mais uma vez, lá estava ela ouvindo as lamúrias de seu amigo, um jovem desempregado: - Larga disso! Você reclama demais. As coisas não aparecem fáceis assim, tem que persistir, esse pessimismo não vai te levar a lugar nenhum. Do outro lado da linha, o rapaz, ansioso, apaga com o sapato o terceiro cigarro consecutivo. O que sua amiga lhe diz é o que as outras pessoas a quem costuma recorrer também lhe dizem, mas ele é o infeliz proprietário de um desses ânimos inconstantes, que variam como um plasma viscoso, uma hora preenchendo o lado da euforia, para instantes depois preencher o lado da disforia, e embora admita com muita relutância os conselhos que ganha, assim que desligar o telefone irá deixar-se levar novamente pelo embalo de suas frustrações. Fica mais alguns minutos na linha, escuta a amiga discorrer sobre histórias da vida alheia e se despedem. Sua namorada não virá esta noite, vai ficar em casa estudando. Tenta se distrair, pensar em coisas boas. Liga a TV; desliga a TV. Resolve telefonar para outro amigo: - Cara, nem dá, amanhã vai ser a maior correria. Depois a gente se fala. Abraço! Sozinho e desconsolado, o rapaz vai se deitar, chorando.

Ela, por sua vez, recebe o telefone de uma amiga; em dez minutos está pronta. Liga para chamar o amigo, mas ninguém atende. As duas saem, encontram outras pessoas, até conversam sobre o caso do rapaz: - Mas isso é fase, eu também já passei por uma dessas; tem que aguentar firme e pensar positivo, aí logo as coisas melhoram. E a turma segue noite adentro, rindo das histórias que a moça contava.

.