sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Olhos Abertos*

Muitas possibilidades permeavam as salas em que trabalhava, o ônibus que o conduzia, as ruas por onde andava e as pessoas com quem mantinha relações. Era normal, portanto, que se dedicasse constantemente a ponderar todas elas, na tentativa de se aproximar da recepcionista de cabelos longos e lábios pintados, da moça que sentava a sua frente todas as manhãs com os ombros e nuca expostos - muito embora tivessem sido raras tais aproximações.

Para os olhos escondidos atrás dos óculos, no entanto, não existia amores platônicos, impossíveis - todas as formas eram capturadas e as texturas, consumidas, voraz e visualmente. Por mais distantes e inacessíveis que fossem durante o dia, nenhuma curva inocente dos caminhos percorridos deixaria de ser contemplada pela fome de seus sentidos.

- "Para que tantas pernas, meu deus, pergunta meu coração. Porém, meus olhos não perguntam nada..."

À noite, já passava da hora em que habitualmente dormia, estava deitado, mas seus pés se agitavam nervosamente, no ritmo dissonante em que sua mente lhe exibia uma confusão de cenas desconexas, lembranças, acontecimentos do dia, temores, expectativas: um indecifrável emaranhado de significados. A chuva branda que caía do lado de fora, vibrando um chiado tão propício a uma boa noite de descanso, contrastava com os movimentos inquietos do seu corpo, rolando de um lado para o outro da cama.

Abria os olhos, como uma pessoa que está se afogando e busca desesperada por ar, mas a escuridão do quarto também funciona como pano de fundo para os devaneios que não o deixam dormir. Seu pensamento continuava acelerado. Experimentou deixar que as imagens fluíssem sem tentar impedir, controlar ou compreender seu encadeamento frenético. Nenhum resultado. Não houve outro meio se não render-se, às imagens que o instigavam à volúpia e à vígilia, e ao tempo, o único capaz de lhe trazer o sono.

Acordou com a estranha sensação de que permanecera a noite inteira com os olhos abertos.

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2 comentários:

  1. Nossa. Intenso é o que posso dizer. Clima de mistério e sonho. Nosso mundo interior fervilha mais do que o de fora em muitos momentos. Engraçado que recentemente tive uma noite dessas e, confesso, acordei com uma sensação de cansaço gigante.
    Apesar de inspirar uma interiorização o texto é ágil, achei interessante.
    Bacana.
    Abs

    Fred

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  2. Valew, caro Frederico Mendes...

    Não fiquei muito satisfeito com a costura que saiu; tentei juntar algumas idéias na mesma narrativa, o devaneio noturno, a fome sensorial, Drummond... mas acho que o texto não ficou lá muito coeso. Vou tentando! Engraçado você comentar sobre um clima de mistério, tenho mesmo optado por finais inconclusivos, a la irmão Cohen, do cinema, acho mais justo, nossas vidas estão sempre sendo construídas, não costuma haver conclusão - senão a indesejada das gentes...

    Abraço!

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