quarta-feira, 15 de maio de 2013

A Modernidade e o Jambolão*

(Repost 27.06.08)

Memórias, da infância ou de toda vida, costumam ser um bom mote para crônicas. Estava a ler uma dessas, que me causou lembranças e vontades de uma do gênero. Reminiscências são alimento para muito pensamento.

E o que me ocorreu de contar foi sobre o pé de jambolão do meu bairro, da minha infância. A árvore era enorme, corpulenta, pertencia a mais de um terreno e seus galhos cobriam boa parte da rua. As frutinhas eram até gostosas, mas manchavam mãos, roupas, casas e calçadas, o que era considerado um problema. Não era uma árvore habitável para molecagens, como as divertidas pitangueiras e o chapéu-de-sol, mas era bom ouvir os passarinhos que no final da tarde vinham e faziam uma enorme festa, gorjeando altíssimo. Mas, como não poderia deixar de ser, o tempo passou, trazendo a modernidade e os negócios, e a árvore precisou ser cortada para dar lugar ao estacionamento de um supermercado. Soube que no dia houve manifestações de desaprovação, uma senhora chorou, e eu mesmo quando vi aquele vazio deixado me senti muito triste, indignado. A modernidade sempre chega; chegou para aquela árvore e chega para nós, embora choremos e relutemos contra suas motosserras e asfaltos, contra suas recentes opiniões que vêm incomodar nosso mundinho já certo em seu erro de ideias bem acomodadas.

Um pouco antes, nessa mesma época, trocaram os antigos paralelepípedos de concreto - que segundo uns ajudavam a dar o ar de cidade praiana - pelo asfalto de piche, muito mais adequado à modernidade. Acompanhei a transformação na companhia de familiares e moradores, que me contavam sobre inúmeros acidentes de trânsito que estavam acontecendo. Reparei que a cidade sofria se adaptando à transformação do asfalto, que trouxera outra velocidade muito mais acelerada à cidade acostumada ao antigo ritmo dos paralelepípedos e lombadas; agora os pedestres e ciclistas - vale a pena citar que a bicicleta é o principal meio de transporte da cidadezinha - tinham que se acostumar e prestar mais atenção com os carros que agora voavam baixo. Voar é coisa da modernidade. E na modernidade tudo é muito rápido.

Como na cidade grande, a metrópole, que é muito filha da modernidade, onde tudo é muito acelerado, inclusive nós, pessoas humanas, que provavelmente ainda teremos muito que se acostumar com toda essa velocidade, pois a correria do dia-a-dia não parece fazer exatamente bem às máquinas com coração e cérebro. Dói, mas também é bonito de ver, na cidade, as coisas tentando funcionar.

No interior é um pouco diferente, o tempo é outro, e até o rápido é mais devagar. Anda-se mais com as pernas, vendo coisas que próprias do interior: pessoas passando a vida na janela, na porta, em frente de casa, jogando conversa fora com os conhecidos - ou nem isso. À noite, têm amigos que se reúnem na rua mesmo, para beber, jogar cartas, alcovitar; para desperdiçar a vida com a tranquilidade dos interiores, onde o galo acompanha, cuidadosa e seriamente, as galinhas a atravessarem a rua, e os terrenos são baldios para que as crianças joguem bola e sonhem em ser grandes jogadores de futebol; interior onde há sempre muito mato para os bichos e resquícios de uma vida natural, com mangas caindo pelas calçadas e araçás ao alcance de qualquer fome; e onde é sempre bom manter-se informado sobre a tábua das marés e a cotação do camarão.

Os interiores são bacanas; os exteriores também. Há muita modernidade misturada à vida besta, mas nem sempre tão simples, de vários interiores e lugares; inclusive em Marte. Nossa tecnológica modernidade sonda até os buracos de outro planeta, é incrível. Mas é possível que em nosso planeta mesmo mal saibamos o que seja afinal essa tal de modernidade: talvez seja o visual sempre arrojado dos jovens, os relacionamentos cibernéticos, novíssimos utensílios domésticos, o bluetooth. De qualquer forma, na modernidade parece não haver espaço para pés de jambolão; quem quiser ter o prazer de se sujar com as frutinhas, terá de buscar um interior - mas que vá rápido!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Veneza*

(Repost 31.08.07)

Nunca fui à Veneza. Mas acabo de receber, de uma querida e dedicada amiga, alguns retratos desse lugar que é, sem dúvida, de uma beleza ímpar. Respondi contando a minha breve impressão: "Os canais de Veneza me lembram labirintos que, com suas casas pequenas e rústicas, dão um certo tom melancólico ao lugar: lindo!" Ao que acrescentei, um pouco tímido: "Já pensou ser um gondoleiro quando crescer?"

Sei o porquê dessa timidez: obedeci ao meu singelo impulso de dizer o quanto sou capaz de fantasiar, mesmo fazendo questão de cultivar a realidade nem sempre tão bela que se apresenta. E me aproveito deste momento para desfrutar um pouco mais dessa ternura que insisto em sentir: eu, um perfeito gondoleiro, empunhando meu remo de estimação, vestindo um fino bigode, chapéu, uma blusa listrada de vermelho, cinto de corda, calça e sapato, ou seja, um autêntico gondoleiro veneziano, a guiar pelos charmosos canais os inúmeros casais, verdadeiramente apaixonados, rumo ao paraíso de amor que sonham...

Essa imagem tem para mim alguma simbologia muito íntima, como se nessa minha vida, tivesse eu a vocação de ser aquele discreto terceiro a navegar junto aos que gozam da felicidade.

Ah, Veneza, Veneza! Que humilde e sincera emoção sinto em imaginar-te!

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Crendice*

(Repost 11.12.07)

Eu me lembro de ser pequeno e ouvir da conversa dos adultos que as dores de quem tinha pedra nos rins eram as piores dores do mundo, as únicas comparadas às dores do parto, e que não havia jeito nenhum de fazer com que as terríveis dores parassem. Até homens choravam.

Lembro-me de ter ficado com muito medo, e de ter desejado profundamente - na época, quem sabe, ter inclusive pedido a deus - nunca sentir essas dores. Batata: cresci, e tive pedra nos rins. Confirmei que as dores eram mesmo insuportáveis, e que infelizmente não havia exagero no que os adultos disseram.

Mais tarde, vim a descobrir que as pedras nos rins eram tecnicamente chamadas de "cálculo renal". Achei bonita e elegante a designação técnica, principalmente por ter sido capaz de reconhecer, com meus parcos conhecimentos em latim, que cálculo, aquele mesmo das operações aritméticas, queria dizer pedra, e supus então que os matemáticos de antigamente, não dispondo de calculadoras, faziam contas no chão, ou com as mãos, usando pedrinhas.

Recentemente, em uma conversa com amigos, brinquei e disse que eu só fui ter os benditos cálculos renais porque quando criança eu ouvira desavisado suas assustadoras histórias, e tive tanto medo que acabei desenvolvendo a doença. Assim como nos advertem algumas das famosas crendices populares, do tipo: "Não pode deixar a criança com vontade, senão fica com lombriga". Tive medo, acreditei e me nasceram pedras nos rins. Talvez a psicanálise chame isso de psicossomatização. Nos meus tempos de criança, era só verdade.

Enfim, quando contei a história para meus amigos, eles, com toda a razão, zombaram de mim e da minha hipótese absurda, no que eu retruquei, participando da graça: "Vocês já sentiram alguma dor no pâncreas? Já ouviram alguém se queixar de dores no pâncreas? É óbvio que não, porque ninguém lembra que o pâncreas existe!" Rimos e concordamos com a teoria. Na verdade, concordamos tanto que, um dia desses, um dos amigos se encontrava em leve desalento e desabafou dizendo: "É só a gente não acreditar e tomar cuidado para não lembrar que existe coração, aí a gente não sofre".

Na dúvida, é melhor não acreditar.