sábado, 20 de novembro de 2010

Enxaqueca*

Ou O Trabalho de Ezildo*

Ezildo chegara naquele momento do emprego em que se fica preso, atolado no meio do caminho. As perspectivas não eram muito animadoras, o cansaço era enorme e todas as outras tantas consequências, bastante desagradáveis.

Outro dia ficou sem hora de almoço porque tinha muito cliente esperando; quase nove horas aturando seres humanos, colado na frente da tela de um computador – aquela luz azul piscando, força tanto a vista... -, sobrevivendo à base de muito café e ódio ao capitalismo selvagem.

“De todos os males que castigam os homens desde o princípio dos tempos, o trabalho é o pior deles!” O desgaste era tanto que Ezildo chegava a delirar filosofias desse tipo enquanto sorria para os clientes. “Crédito ou débito?” 

Queria saber só de casa e banho, cama e mais nada; na sua cabeça, a dor ecoando desde o começo da tarde começava a pulsar mais forte, a ponto de quase anuviar o raciocínio, flash no escuro, tontura, mas sabia que continuava no mundo, graças a uma certeza: tinha um caroço de enxaqueca latejando palpável no fundo dos olhos que estavam sendo pressionandos contra o miolo da sua cabeça.

Depois que piscou forte, sentiu-se mais aliviado, porque seu cansaço era concreto e somente aquilo Ezildo era capaz de sentir. Entregou-se ao cansaço como quem se entrega a um colo de mãe, e durante um momento de claridão foi feliz. (Até uma lágrima, quase invisível, brotou das olheiras de Ezildo, encontrando o canto de seu sorriso.) “Eu vou acordar, eu vou acordar, só mais um pouquinho, porra.”, ele dizia. Ou era o caroço? “Vai se fuder nessa porra!” Nas primeiras vezes, quem estava em volta acudindo fingiu que não ouviu. Mas depois o semblante de Ezildo ficou mais sério e ele disse irritado feito criança: “Essa porra desse trabalho! Vai todo mundo se fuder!” Dessa vez quem estava em volta não teve como fingir que não tinha ouvido. Até Ezildo ouviu e deu por si no chão do escritório, sendo rodeado e abanado, sentindo que alguém enfiava uma agulha atrás de um lado da sua cabeça. “Puta que pariu, que dor de cabeça da porra...”, foi a primeira coisa que ele disse. “Essa enxaqueca vai me matar!”

Mas se matou, não foi daquela vez e nem tão cedo também não foi. O caroço continuou castigando Ezildo, que além de muitos remédios precisou se empenhar ainda mais para evitar falar palavrões toda vez que sentia aquela terrível dor de cabeça durante o trabalho: fechava os olhos bem apertado, respirava fundo e continuava a sorrir mortalmente para toda a humanidade..

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Desencontro*

A viagem de ônibus demorava mais ou menos três horas. Três horas de viagem, sem companhia, observando as paisagens que se seguiam pela janela: planícies, elevações, curvas, descampados, matas, casas simples e bairros pobres. Não se via mar, sendo possível apenas pressenti-lo. 

Em breve chegaria, depois de esperar algumas semanas. Em breve haveria um reencontro, outro reencontro em uma relação feita de reencontros, na qual pouco se viam e muito se falavam. Quantas vezes já não experimentara aquela sensação, misto de expectativa e saudade, mas naquele momento havia algo de diferente nos olhos refletidos no vidro, acompanhando as paisagens. Poderia ser cansaço, talvez fosse tristeza. Não era alegria, nem excitação. No ônibus quase vazio, o silêncio dos corredores se juntava ao barulho dos motores. Um breve cochilo.

Beijos e mãos dadas. Casa. Breves momentos de prazer. Palavras que raramente se encontravam, pouco além de coisas pequenas. Deitados, juntos, experimentava aquela sensação, como se os olhos estivessem sendo mais uma vez refletidos no vidro, mas não havia paisagem do outro lado.

Beijos, abraços e um olhar de adeus. Embora não soubesse, não haveria outro reencontro. Haveriam de se falar, mas nunca estariam novamente deitados um ao lado do outro. Aqueles momentos haveriam de ficar para trás na paisagem, perdidos entre muitas curvas, como a lembrança do mar escondido atrás de casas simples e bairros pobres. Só acordou com as luzes da cidade que a esperava.

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