sábado, 20 de agosto de 2011

A Luz Inconcebível*

No escuro do quarto
minha consciência é uma voz
que percorre todo o interior
sem tocar as paredes.

E no fundo, pulsando
encontro uma luz crescendo, latente
como estrela opaca, azul, intensa.

Apenas nela é possível pensar
tentando desvendar os seus caminhos
os seus motivos, mas nada entendo.

O sono não vem e sem ele há o temor
de que esta luz não me abandone.
.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Contra*

Minha doença
é também uma luta
contra deus
contra a vaidade.

Pois todos sabem
o quanto é fácil rezar
quando precisamos de socorro.

Deus não olha para mim
deus não é cirurgião
deus não está lá
para atender minhas vontades.

Tampouco pensar positivamente;
nesse caso, só o Dinheiro salva.


sábado, 16 de julho de 2011

A Outra Língua*

Falamos a outra língua do amor
quando pagamos nossas contas
decidimos o que vamos jantar
nos vemos sair do banho.

Para que dizer - eu te amo?
Se o amor é também o que não é dito
é o dia após dia
é o tempo que segue
o estado de ser.

Não dizemos
porque respiramos o que é estar juntos.
.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Ruído*

Mantra, Esquecimento ou Dedução

O ruído elétrico
da caixa de som
parece um mantra:

Ommm...

Mas a agonia espreita
como ser estranho no meio de estranhos.

A mão que procura
as últimas páginas do caderno
o que querem?
Evasão, delírio, deleite
- esquecimento.

A manhã que termina
a manhã que vai terminar
é este, eis o mote:
basta acordar, parar e pensar.

O resto se deduz.
.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

No Fim do Dia*

Celular, chave de casa, carteira;
aquele banho quente no final do dia...
- Droga, o ônibus já passou! Tsc,
esqueci de carregar a bateria.

Lembro da sensação de chegar na rodoviária,
o cheiro do bairro, o silêncio do mormaço...

Mas o cotidiano é maior
e só faz sentido o colchão para deitar;
no domingo, a tarde mal se vê pela janela
e o mês só começa quando vira,
o mês passa aos borbotões,
o ano finda, termina outra vez
-  depois continua.

Em qual lugar do ônibus devo sentar?
Vou comer o quê no almoço?
A semana, a segunda,
o sapato que estragou.

Tempo, nem coragem para um alongamento.
É tão triste não ter um alumbramento...,
uma epifania, todo dia
poder respirar e fechar os olhos por dentro
- depois sorrir, levemente...
sempre pensando nas curvas que o mundo tem.

O mundo tem curvas no fim do dia,
as ruas se repetem debaixo do sol,
das nuvens, dos carros, dos lugares, 
- dos mesmos lugares, 
em um mesmo instante
em uma mesma noite
diferente
com muitas músicas 
e um ritmo andante, às vezes repentino, inconstante, 
rumo a.

domingo, 19 de junho de 2011

Fogueira 2.0*

O problema são esses Valores...
desde que existem, nunca foram úteis.
Digo isso porque vejo hoje
como o resultado de todos os tempos.
Mas e a Tecnologia, o Conhecimento?
Nada disso tem Valor se não possui equilíbrio.
O fato é que não vivemos em uma sociedade, 
em um mundo, autossustentáveis.
As gerações passadas não foram capazes de encaminhar 
um real desenvolvimento - e tampouco será a nossa.
“A Vontade de Poder”, nos termos de Nietzsche,
sempre orientou as decisões humanas.
Por isso, todas as noções que compõem o nosso modo
de ser e pensar são equivocadas:
a mesquinharia de uma Alma além da Natureza Objetiva; 
a Posse sobre Pessoas e Coisas.
(Todo o Egoísmo será castigado.)
Mas hoje, como sempre, promete um novo amanhã 
– o Mito do Eterno Retorno –
onde tudo que é sólido estará, enfim, dissolvido no ar.
Por que então não reinventar?
Todos os Valores do Passado
são responsáveis 
pela miséria do Presente!
Inventaram o Espírito, o Dinheiro, a Família e o Amor.
Gerações futuras, dissolvam tudo! 
Transformem o mundo em que vivemos!
Conectem seus cérebros ao chão em que todos pisam, 
digitalizem a realidade,
destruam tudo o que é sólido e individual!
Até que o último Conservador seja enforcado
nas tripas do último Hipócrita!
Política para quem? Decidam vocês mesmos!
Quem quer ser o filho de um pai Ocidental , Cristão e Racional?!
(Moral só se for Macunaímica.)
É preciso atear fogo ao circo, com o mágico dentro.
Só os palhaços, anões e mulheres barbadas
devem dançar, sorrir e cantar, do lado de fora.


quinta-feira, 16 de junho de 2011

Pessoas*

As pessoas nascem de repente, de um olhar
Um encontro
Duram um minuto, uma noite, um beijo
Ou desaparecem com o tempo, devagar
Tornam-se palavras...

Mas antes de haver palavras, há sentimento
Pessoas que tornam-se palavras

Memória é imagem
Visível apenas para a lembrança
Afinal,
Do que são feitas as pessoas?

Palavras, de repente lembranças
- Não tão de repente -
Pois no fim do que é tão longo
Pessoas são apenas
Sentimentos.

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sábado, 30 de abril de 2011

Cigarro*





É algo por volta da meia-noite. Ao longe, na parte alta de uma rua escura, a sombra de um homem vem se aproximando. São passos apressados e desordenados, que de repente descambam abruptamente para um dos lados e, nervosamente, voltam ao centro. Conforme chega perto e é possível ver o seu rosto, consigo reconhecer algumas lágrimas e uma expressão bastante desolada. Passou por mim resmungando surdamente alguma coisa e fumando um cigarro. Pude ver que tinha dedos finos e um cabelo meio grande e despenteado; não dava para ver a cor dos olhos, apenas o brilho vermelho do cigarro aceso. Eu tinha ido comprar um cigarro, estava com calor e sem sono, meio agoniado. Esse homem me fez pensar no quanto a vida é frágil e o desespero, eminente. Vejo este homem saindo de casa e batendo a porta com força. Tinha brigado com a mulher, saiu só de shorts, camiseta e chinelo. Mas isso adivinhei quando ele passou por mim. Eu havia ido apenas comprar um cigarro, e só agora percebo que também não me lembrava onde estava, tinha saído de casa sem saber onde poderia ter cigarro para vender àquela hora; agora, não sei se ia voltar ou continuar andando até encontrar alguma coisa aberta. Apenas acordei na cama no dia seguinte. Tomei um café e fumei um cigarro, pensando na imagem desse homem.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Suburbia*

Eu me sinto oco
e penso no sentimento
que me faz igual a todos os outros
moradores de subúrbio espalhados pelo mundo.

Quando a noite cai e o céu ainda é lilás,
as luzes dos postes iluminam as ruas que cruzam
o conjunto de prédios – e do interior de alguns apartamentos
emanam ruídos de televisores; das calçadas, ouvem-se os desvarios
                                                             [de jovens despreocupados.

Aos poucos, cada apartamento é preenchido por um total de vidas
que percorreram as ruas do centro ou em pé permaneceram atrás de balcões,
esteiras de fábricas, ou sentadas em cadeiras de colégios,
construindo um cotidiano ordinário e imperceptível
– mas extremamente útil, porque é assim que se engana a morte.

Somos todos iguais,
irmãos reunidos por uma mesma realidade,
pois tenho certeza que em algum lugar do México,
ou da Indochina,
um rapaz de cabelo curto e olhos negros
fuma, sem camisa, seu cigarro na sacada de um pequeno apartamento
e vê a surda sinfonia que fazem as luzes apagadas e acesas dos outros prédios.

O ônibus de todas as manhãs é também para ele
um animal sagrado que carrega em seu bojo a tola epifania
de uma multidão de pessoas que todos os dias sonham acordadas
esperando por sua chegada como em uma procissão estagnada
                                                       [no mesmo lugar de sempre.

Na sala, uma mulher sentada no escuro é iluminada apenas
pelo reflexo azul das luzes da televisão, visto de longe por alguém
em qualquer uma das sacadas, do México, ou do mundo.

O rapaz termina o seu cigarro,
olha uma última vez para as lajotas da rua,
é noite e as vozes vão diminuindo até que um silêncio
preenchido de leves ruídos anuncia o momento de se preparar
para mais um dia de trabalho.

Este silêncio é a imagem do subúrbio.

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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Linha do Trem*

Retrato desta paisagem nunca houve: os vagões estacionados na estação abandonada, exceto por um ou dois bêbados tomando suas doses, e o convento de pedras construído por escravos a assistir tudo do alto do pequeno morro. 

Os vagões tinham aquelas escadinhas, que levavam ao seu oco interior, repleto de emoções e muita ferrugem. Depois, era preciso pular para descer - um grande salto para a infância. O céu: o céu era quase sempre azul, quase sempre o céu da tarde. E o mato crescia na beirada de tudo, dos trilhos, das rodas de ferro, entre as tábuas, tábuas velhas e apodrecidas. Não era um trem de gente, esse passava muito raramente, numa infância ainda mais remota. Era trem de grãos, ou de enxofre, seja lá o que isso fosse.

                                                        * * *

O objetivo era simples: permanecer o maior tempo possível sem cair da linha. Fui campeão algumas vezes, embora geralmente houvesse trapaça do amigo. Ou então fazer o percurso pisando só nas tábuas. Ao lado dos trilhos, havia um morro ainda de terra, com terreno esburacado e cheio de pedras, que também poderia servir de desafio complementar, caso fosse necessário; mas o legal mesmo era transpô-lo de bicicleta. Do outro lado, barracos e casebres emergiam de dentro do mangue, onde se podia caçar caranguejos com lama atolada até os joelhos. Mais adiante, havia a ponte de ferro onde o trem passava antigamente e que naquele tempo servia apenas como ótimo lugar para pescar.

                                                       * * *

Os vagões de repente desapareciam. Era menos divertido passar e não encontrá-los. Somente os bêbados lá permaneciam, de pé no balcão do bar que era um vão na parede da estação, suja, destelhada, carcomida pela ação do tempo e dos vândalos - ou pelo vandalismo do tempo. O único desafio que restava era pular da plataforma; usar a escadinha que levava ao chão, jamais.

Foram poucas as vezes que pude atravessar o vagão. Durante alguns anos pude vê-los aparecendo e desaparecendo, até que sem me dar conta os vagões desapareceram de vez, restando apenas os escombros de tábuas, trilhos e o verde do mato implacável.

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