quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Passarinho*

(Repost 28.06.08)

Muitos dos que leem devem ter tido, quando criança, um relacionamento afetivo com árvore, se pendurando nos galhos - aos gritos das mães -, colhendo frutinhas, construindo casinhas e brinquedos. Acredito que minha geração seja provavelmente a última a contar com uma dessas histórias de árvore. E o mesmo acontece com as ruas de terra e com as brincadeiras em rua de terra, a pipa, o peão: jogos que não interessam mais a geração dos apartamentos e videogames.

O que não tive foi a oportunidade de caçar passarinhos. Não pela caça, obviamente, que é atividade muito maldosa, mas pelo prazer do contato com esses bichinhos encantadores, tê-los na palma da mão, conhecer suas variadíssimas espécies e cores e cantos. Não é a coisa mais bonitinha um passarinho andando, aos pulinhos?

Lembro-me do meu pai contando histórias de passarinho: investidas, negócios, cuidados. Um de seus maiores arrependimentos, segundo ele, era ter matado alguns passarinhos. Por isso, sempre que penso na palavra remorso me lembro de passarinhos. Aprendi a nunca permitir esse sentimento, e a ser bem quietinho, como quem espreita passarinho.

Já pensei em criar um calopsita em casa, mas o cativeiro é sempre uma judiação, e felizmente minha preguiça é sempre maior do que planos tão audazes. Já pensei também na hipótese de me tornar um “passarinhologista”, espécie de biólogo-fotógrafo amador, para estudar e saber tudo sobre passarinhos - ideia que, ao que tudo indica, terá o mesmo fim das outras.

Passarinhos são tão bonitinhos que dá até para conversar sobre eles sem ter a preocupação de dizer nada mais além de sua beleza; sem precisar fazer nenhuma consideração importante e séria sobre a vida. Só a palavra passarinho já é bonita: passarinho... Arte boa é assim, existe quase que naturalmente, um encanto em si, que surge sem a mão e a razão bruta do homem. Basta concentração e atenção para avistar uma, como a um passarinho. Com empenho e sorte, pode até ser que um atravesse a janela e entre em sua casa, pouse em sua cama, abra o seu livro favorito e repouse tranquilo - com todo o esplendor de sua plumagem à mostra -, cantando algumas levezas em palavras, como em um belíssimo e epifânico voo emoldurado por uma pintura que nasce diante de seus olhos emocionados.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Crônica Sobre uma Viagem de Ônibus*


Logo cedo, antes das oito, o povo indo trabalhar...

O motorista, ao invés de virar no farol à esquerda, continuou em frente. Não sei se pelo horário, ou se pela segunda, ninguém reparou, ou teve preguiça de perguntar - sentados, ouvindo música, falando a língua do cotidiano, e dos ônibus.

Eis um fato extraordinário, ninguém reclamar, gritar que aquele não era o caminho certo, permanecer em uma viagem sem saber o destino certo. Isso sim seria um absurdo.

Mas estranhamente, houve este momento fantástico, surreal, em que todos inebriados pelo começo do dia se deixaram levar à luz ainda amena do sol, como que amanhecendo a realidade.

Da janela, ruas, calçadas, pessoas... Tudo que vem dos olhos.