quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Nuvens*

Onde eu nasci era qause todo dia assim, o céu cheio de nuvens: nublado. Tinha vezes que eu queria muito ir na praia (tinha visita mais que importante, do amor), mas o céu estava sempre muito fechado, com cara de chuva, e a água muito gelada.

Quando vejo o céu assim, tão cheio de nuvens, tenho saudades, porque onde eu nasci era assim.

Depois conheci céus diferentes, sem nuvens, com tempo aberto a maior parte do tempo, achei bonito e gostei da ideia de ter sol o tempo inteiro; dava pra ir na praia todo dia.

Mas com muito sol faz muito calor e muita claridade dá sono; e mesmo com muito sol não dá pra ir na praia todo dia: são muitas coisas, às vezes até mais que o amor, mais que a praia.

Bom mesmo era ter um pouco de céu assim, cheio de nuvens, pra ficar emocionado lembrando, amoadinho, sentindo falta. E outro pouco de céu aberto, com sol queimando, a gente ardendo, mergulhando.

Tudo isso só de olhar pro céu. E ver as nuvens...
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Tatuagem no Pulso*

As agulhas da ideia
perfuram a pele dos pensamentos
e a tinta misturada com sangue
descreve no pulso
a tatuagem indelével
a palavra em grego
que não deve jamais
ser esquecida:

SILÊNCIO.

Tatuagem no pulso
para ver sempre
lembrar a todo momento
do mais sublime ensinamento
dogma, obsessão
verdade, convicção:

SILÊNCIO.

Gravado na pele
certeza de tranquilidade
prática sutil da morte em vida
lugar comum de toda sabedoria:

SILÊNCIO.

O fim monótono da existência
a ausência do verbo
do erro e do ego:

SILÊNCIO.

Vontade íntima
constante e exposta
tatuada no pulso
gravada na pele.

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Como Me Tornei um Babaca*

Foi muito fácil, qualquer um pode. Mas, na verdade, não teria sido possível sem a ajuda dos outros, afinal, é preciso que as pessoas lhe considerem um antes de você mesmo assumir essa tão desprezível realidade - ser um babaca para si mesmo geralmente é mais difícil, pois exige muita paciência para a autocrítica e gosto sádico pela autodepreciação.

Um babaca nada mais é do que uma espécie de louco que não foi excluído e permanece incomodando os indivíduos normais da sociedade. Para ser um babaca você precisa irritar as pessoas, ser inconveniente, chato, e sobretudo não falar a mesma língua que elas, não compartilhar dos mesmos assuntos, soltar frases aparaentemente desconexas, com sentidos de outro mundo, ou ficar em silêncio e ser um babaca do tipo autista ou arrogante.

Para a maioria não é fácil carregar o peso de um título tão distinto, que exige constante apereiçoamento na arte de ser mal quisto, mas o dom geralmente é superior às adversidades e tentativas de se fazer aceitar e levar uma vida normal junto de pessoas normais. O verdadeiro babaca sempre consegue dar um jeito de estragar tudo e causar aquele precioso desconforto geral por onde quer que passe.

Se você também se acha com vocações para ser considerado um autêntico babaca; se muitos já fizeram o favor de te dizer isso, ainda que nas entrelinhas, não se intimide com essa responsabilidade. Para quem carrega o dom de ser um babaca, nunca é preciso muito esforço.

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sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Nem Tudo*

A vida é um mar de rosas
Por isso tenho sangrado tanto
O amor é a janela aberta
Por onde entra o ladrão

Não me mostre o espinho
Deixa eu adivinhar
Quando alcançar a rosa

Tudo é tão belo
Nesse imenso jardim
Mas nem tudo se colhe
Nem tudo se beija

Pois tudo acontece
E não se sabe o sabor
Só se conhece o espinho

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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Mais Leve Que o Ar*

Cerca-me do teu carinho
Mas deixa um caminho
Para eu sair
E me sentir sozinho
Quando eu estiver distante
Voltar chorando
Como criança perdida

Você vai se lembrar de mim
Quando tudo acabar
Quando tudo chegar ao fim

Ele não soube escapar
Será tão triste
Como sempre é
Depois só passado

Mas até lá
O quanto custa
Estar soterrado
Por algo mais leve que o ar

Sem nunca saber
Porque tudo é assim
Sem precisar ser
Tão pesado

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A Arte da Tristeza*

Uma cena dessas, tão comum nos dias de hoje, o homem que antes ou depois do trabalho vai para o supermercado, fazer uma comprinha de coisas que estão faltando em casa.

Passeando pelos corredores e prateleiras, empurrando seu carrinho, sossegadamente, estica o braço, alcança um macarrão, molho de tomate, anda mais um pouco, precisa de pasta de dente, sabonete - e umas cervejinhas também, para relaxar em casa no final do dia.

Já no caminho do caixa, dá uma olhadinha na seção de entretenimento, que além de cd's, dvd's, tem livros também: receitas de comida, Sêneca, Ovídio, como se tornar muitas coisas, best-sellers em geral; mas um livro por acaso chamou sua atenção. O título era "A Arte da Tristeza". Começou a folhear as páginas e encontrou algumas frases, do tipo: "A tristeza, quando é um sentimento puro, livre de raiva e frustrações, pode trazer muita calma e tranquilidade; A felicidade é tão inocente! Frágil e iludida, como um adolescente; A lânguida tristeza é o estado de paz mais próximo da verdadeira serenidade."

Interessante. Quem sabe com uma dessas frases não poderia justificar para si mesmo, ou para alguém que o interpelasse, aqueles momentos que, sem nenhum motivo aparente, tinha vontade de ficar sozinho, em silêncio.

Resolveu levar o livreto. Sentiu vontade de mostrar para a esposa. E afinal de contas, era tão baratinho! Jogou ele entre os outros itens do carrinho, e antes de ir embora ainda deu uma olhadinha na seção de eletrodomésticos.

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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Um Dia na Vida*

Primeiro, o relógio avisa que é hora de se levantar. Depois, a toalete, a água no rosto e o espelho, o primeiro contato com a imagem de si mesmo: começam a surgir as primeiras impressões, ainda misturadas com imagens de sonho. Lembramos da vida.

No café já se começa a processar as tarefas, pessoas, eventos, pensamentos, lembranças, sentimentos - movimento de consciência espontâneo, versátil, volúvel e volátil, que arrasta, muitas vezes com violência, a canoa da imaginação até distantes e estranhas margens. Surgem também as primeiras pessoas, presenças vultuosas, emitindo sons e significados mecânicos - esboço de alguma humanidade.

Uma vez de pé, e em plena atividade, perde-se de vista, por muito tempo, o fio de consciência que sozinho se aventura no imenso mar das sensações. Vez ou outra, encontra alguma ilha no caminho, procura sinais de vida, deleita-se quando encontra correspondência, mas de novo é levada pelas ondas. Metáforas. Como se os sentimentos fossem partículas de gás brilhante que tendem a se expandir infinitamente mas encontram as paredes do corpo: efluvescência.

Mais um dia na vida terá se passado, mais um oceano de sentimentos terá se perdido, ou se transformado em poeira invisível, inexplicável, enquanto tudo continuará funcionando fria e perfeitamente: nada terá sido, nem compreendido, nem comunicado.

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