sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A Última das Horas*

No meio da multidão está o rosto de uma pessoa, entre centenas de outras pessoas, seguindo pelas calçadas alvoroçadas de pernas, por dezenas de ruas que cortam espaços completamente preenchidos de prédios.

Toca o celular: "Oi, amor. Na rua. Não, não demoro. Beijo."

A música volta a penetrar por seus ouvidos, calando o intenso ruído do mundo lá fora, misturando-se a vagos pensamentos disformes, sobre a mulher, a vida, o trabalho, evocando lembranças interrompidas continuamente por vozes, imagens, e fazendo com que tudo se condense em um anestesiante estado de distração.

Olha o relógio - está atrasado -, enquanto um leve tumulto passa desapercebido do outro lado da rua. É tudo muito rápido. De repente, simplesmente deixa de existir. Pessoas começam a correr, assustadas. Alguns minutos depois, aglomeram-se curiosos, gritos surgem pedindo socorro, um homem foi gravemente ferido, parece estar morto, deve ter sido baleado, atiraram do outro lado da rua, assaltaram uma loja de roupas.

A ambulância demora, as pessoas voltam a caminhar nervosas pelas calçadas, o ruído que por um instante cessou volta a sua intensidade normal, os médicos chegam, examinam o corpo, é tarde demais, não houve chance, morreu na hora, o tiro atravessou um órgão vital, não deve ter sentido dor, talvez nem tenha percebido que morreu, fulminante do jeito que foi, não dá tempo nem de lembrar que um dia esteve vivo.

No restaurante a três quadras dali, uma mulher espera em vão por seu marido.
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5 comentários:

  1. Cara, muito intenso e forte... Narrativa simples e direta, mas que traz toda a carga de intensidade da cena em si... E nada poderia descrever melhor a continuidade das coisas que o ruído voltando À sua intensidade normal...

    Abraços, rapá!

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  2. Amor,
    muito bom.
    Adorei a construção do texto =)
    =*

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  3. Srila Prabhupada afirma que o mundo material é um local onde há perigo a cada passo. Um local onde impera a impermanência, a finitude e uma série de misérias. Lindo texto. Abração.

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  4. Olás,

    Também achei que a construção do texto ficou bacana e conseguiu expressar um pouco da intensidade necessária. (Valew Rubens e Buxinho...)

    "Um local onde impera a impermanência, a finitude...", eis o nervo do texto, uma bela síntese. (Obrigado por voltar a comentar, Adriano.)

    Abraço!

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  5. Olá.
    Trágico e belo ao mesmo tempo. O "nervo" do texto é muito pertinente aos nossos dias em cidade grande. Me remeteu tbm a um sentimento de extrema incerteza em relação ao minuto seguinte: a incerteza e a impermanência podem ser tão violentos e agressivos quanto um fato violento concreto em si.
    Abs
    Fred

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