quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Máscaras*

Escrever é também assassinar eu. E se assim não for, não tem graça.
Enterrar as várias máscaras... no fundo, ouvir um grito de horror.

Mas tudo isso começou, porque me vi em alguém.
Vesti uma das expressões mais tristes... mais felizes.
Senti aquela deliciosa e única opressão no peito - ainda bem que era de tarde.

(Minutos, minutos...)

Aí então fui escrever, mas antes pensei: paramos todos para nos refrescar
no sol, precisava saber quanto tempo havia se passado:
"não sou bom com dinheiro, prefiro ter sem possuir, como a vida, o amor, a palavra...".

Aviso: eu que escreve também é personagem.
Não, não, não; não há nisso nem mentira, nem verdade, nem ficção.
Apenas é. Porque sou aquilo que sou, aquele que é. Por que não?

E sempre música. E sempre tempo, e sempre clima. Cidade e praia.

(Minutos, minutos...)

Tarde, espelho e jardim: é uma bela combinação, mas não um fim.
Eu mesmo só peço que haja vinho. É que o passado às vezes me atropela no presente - com que força!

É que eu não sei partir (pois só assim posso ser triste, sentindo saudade,
por sentir).
Aviso: não se engane com quem escreve.
Por favor, lembre-se apenas disso.

Por hora, me vou - já tarde.
Até logo ou adeus.

Eu.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Retrospectiva*

Enfim uma croniqueta, coisa que há muito desejo e nunca faço. Vai chegando o fim do ano, e uma necessidade de retrospectiva se torna tão atraente..., quase um dever. 

Durante algum tempo pensei qual seria o "evento" que marcaria 2010: nem Copa, nem pré-sal, nem Dilma; este, para mim, foi o "ano da Classe C". Ficava impressionado quando via no noticiário matérias sobre acesso à renda, poder de compra, bons índices econômicos. Esse parece ter sido o movimento que explicou o Brasil em 2010. Até que um dia o exército subiu os morros do Rio de Janeiro - e bum!, lá se foi a assegurada posição de destaque que a minha proeminente Classe C alcançou. Foi como se uma coisa enfim estivesse acontecendo, uma coisa que marcaria a história do Brasil - caso meu ensino médio tenha sobrevivido até então. Ainda mais depois de assistir Tropa de Elite II - o que ajudou a criar aquela sensação de "estamos vivendo a ficção ou a realidade?".

O movimento da super-estrutura econômica globalizada que torna o país a bola da vez também trouxe muitas "estrelas" para cá: não fui em Metallica, nem Rage Against, nem Paul McCartney, nem Incubus de novo e otras cositas más. Paciência. A vida burcorática tem seus caprichos e nem sempre é possível haver sobremesa, mas nem por isso os enxeridos se divertem menos, não é mesmo? O que precisa haver é rok'n'roll - e banda larga para baixá-lo.

Agora é natal, tempo de boas compras, e eu continuo sem saber se o Haiti é ali ou é aqui. Há terremotos e mais terremotos no mundo. 2012 está logo ali. Enquanto isso, vejamos o que a fortuna nos reserva para 2011. Se o capitalismo permitir, o Brasil há de se tornar o país do futuro e a classe C há de tomar o poder. Se em 2011 nevar, quem sabe eu não vivo pra ver a revolução da educação brasileira? Mas deus, ao futuro pertence. As férias me dizem estão para chegar e o ano ainda não acabou. Que venha o outro, e a gente vê o que dele pode ser feito. 2010, valeu, mas pode trazer a conta. Se em seguida puder haver praia, eu agradeço.


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Incursão*

Toca o despertador - daqueles antigos, com sininhos. Ainda é noite, mas as luzes de casa já estão acesas: é hora de sair - viajar.

A cidade ainda não acordou, permanece extremamente silenciosa; pessoas e carros raramente passam. As ruas amareladas pela luz dos postes sustentam o céu noturno, estrelado, que lentamente se torna azul escuro, depois claro e logo manhã, dia. O ônibus parte para outro mundo, que começa com muita estrada, primeiro com morros afastados no horizonte da janela e que depois espremem a pista no caminho cheio de curvas rumo ao topo da serra escondida no meio da neblina. De repente, o caminho volta a ser reto e o morro vai ficando para trás, dando lugar a grandes imensidões de pistas, carros, casas, cidades, prédios e barulho, fios e outdoors, fábricas, escolas, muros e mais placas, sinais, faixas e multidões de pessoas.

A outra cidade é um mundo muito maior e mais apertado, totalmente diferente. O ônibus vai, se enrosca e para no trânsito; depois continua, para mais mil vezes, se espreme em ruas estreitas, grandes avenidas. E depois de muito verde, amarelo e vermelho, acaba chegando: num bairro grande feito cidade, com praça amontoada de barracas e gente, e pessoas lotando as calçadas, formigando dentro de lojas, entrando, comprando e saindo. O ônibus ficou parado no estacionamento, descansando enquanto as canelas começavam a suar, correr, andar, parar, subir e descer, voltar, para depois seguir, cansar até antes da tarde chegar, para logo em seguida partir, retornar durante a noite de um dia inteiro fora, reclinando o cansaço na poltrona e cochilando entre os borrões de luzes amarelas e vermelhas que vinham da estrada.

Chegando, a cidade continuava daquela mesma cor amarelada, mas agora preparando para se recolher. Desembarcando, do ônibus para casa e da porta para a cama. Amanhã o dia acordaria já azul, com sol e nuvens. Seria um dia normal, sem viagens e outras cidades. A vida continuaria.

.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Morfina*

Vou me deitar, antes que fume outro cigarro
Vou esperar que o ano acabe, antes que ele acabe comigo
Meus joelhos doem e meus nervos explodem
Tenho um sonho antigo
Sonho com um pouco de morfina
E menos pessoas no mundo
Sonho com um ouvido para chamar de amigo
Me falta paciência quando não me falta abrigo
Sei de tudo que preciso
Mas não consigo, eu não consigo
Fazer silêncio, sem fuder comigo
Eu sonho com um pouco de morfina

.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Temporal*

Ou o Relógio Sem Ponteiros

Tarde de domingo, depois do almoço. Há quatro dias não parava de chover. Abre a cortina, vê o temporal castigando a rua: a chuva caindo de lado, o vento quase levando os galhos da árvore. Tudo muito cinza. Tão escuro, logo cedo, que a luz dos postes já estava acesa.

Deita no sofá. Nada na tv, nem videogame, nem amigos fora de casa com um tempo ruim desses. Sua maior sorte seria dormir. Entrega-se ao tédio, ao braço do sofá e ao cobertor. Desejava que as horas passassem logo e fosse logo amanhã. Inquieto, isolado naquela sala perdida em um temporal de domingo, vai atrás de umas fotos que guardava na gaveta. Além do álbum com balões coloridos na capa, achou um relógio antigo. Numa tarde de chuva em casa, sozinho, parece que o ar se torna um véu espesso impregnado de horas mortas. Reparou que o relógio não tinha ponteiros. Não lembrava o por que daquilo e foi se deitar novamente.

Domingo à tarde, sol. O dia está lindo lá fora, dá vontade de abrir a janela e deixar a luz entrar. Ou quem sabe sair, passear, ir à procura de lugares verdes, com água por perto; caminhar nas areias da praia que não parece ter fim (mas há um morro lá longe). O céu deve estar laranja na praia, manchado de nuvens roxas, com pinceladas de rosa. O mar vai seguindo ao lado, calmo, azul escuro, com o barulho de ondas quebrando no raso. É bom andar com as pernas, pensar na vida e sentir que todas as coisas só podem ser do jeito que são, sem se importar com os passos que ficam para trás na areia. Parece até que a vida é só o presente, porque a marca dos pés a gente acaba encontrando na volta – mais fracas, é verdade. Do outro lado da janela, o tempo muda.

Aquelas fotos lembram um domingo na praia. Era inverno e garoava fino. O tempo estava tão nublado que a luz dos postes já estava acesa (alaranjada) e o mar grande, bravo, inpenetrável. Sombras de pessoas apareciam distantes, possíveis pescadores.  Não havia outro abrigo, se não um telhado de palha para se esconder da chuva e algum tempo a mais antes de voltar para casa. Não se importava com a paisagem fria, desejava que as horas não passassem, mas que pudesse estar em casa, ou caminhando na praia num dia de sol. Olhando aquelas fotos, sente que o tempo é uma tarde de domingo chuvosa, e que a felicidade é cinza da cor do céu quando ele se junta com o mar em um dia nublado.

Abre a cortina e vê o tempo estiar numa tarde de domingo. Mais uma tarde de domingo, outra fotografia perdida na gaveta e mais horas que não serão marcadas no seu relógio antigo.

.

sábado, 20 de novembro de 2010

Enxaqueca*

Ou O Trabalho de Ezildo*

Ezildo chegara naquele momento do emprego em que se fica preso, atolado no meio do caminho. As perspectivas não eram muito animadoras, o cansaço era enorme e todas as outras tantas consequências, bastante desagradáveis.

Outro dia ficou sem hora de almoço porque tinha muito cliente esperando; quase nove horas aturando seres humanos, colado na frente da tela de um computador – aquela luz azul piscando, força tanto a vista... -, sobrevivendo à base de muito café e ódio ao capitalismo selvagem.

“De todos os males que castigam os homens desde o princípio dos tempos, o trabalho é o pior deles!” O desgaste era tanto que Ezildo chegava a delirar filosofias desse tipo enquanto sorria para os clientes. “Crédito ou débito?” 

Queria saber só de casa e banho, cama e mais nada; na sua cabeça, a dor ecoando desde o começo da tarde começava a pulsar mais forte, a ponto de quase anuviar o raciocínio, flash no escuro, tontura, mas sabia que continuava no mundo, graças a uma certeza: tinha um caroço de enxaqueca latejando palpável no fundo dos olhos que estavam sendo pressionandos contra o miolo da sua cabeça.

Depois que piscou forte, sentiu-se mais aliviado, porque seu cansaço era concreto e somente aquilo Ezildo era capaz de sentir. Entregou-se ao cansaço como quem se entrega a um colo de mãe, e durante um momento de claridão foi feliz. (Até uma lágrima, quase invisível, brotou das olheiras de Ezildo, encontrando o canto de seu sorriso.) “Eu vou acordar, eu vou acordar, só mais um pouquinho, porra.”, ele dizia. Ou era o caroço? “Vai se fuder nessa porra!” Nas primeiras vezes, quem estava em volta acudindo fingiu que não ouviu. Mas depois o semblante de Ezildo ficou mais sério e ele disse irritado feito criança: “Essa porra desse trabalho! Vai todo mundo se fuder!” Dessa vez quem estava em volta não teve como fingir que não tinha ouvido. Até Ezildo ouviu e deu por si no chão do escritório, sendo rodeado e abanado, sentindo que alguém enfiava uma agulha atrás de um lado da sua cabeça. “Puta que pariu, que dor de cabeça da porra...”, foi a primeira coisa que ele disse. “Essa enxaqueca vai me matar!”

Mas se matou, não foi daquela vez e nem tão cedo também não foi. O caroço continuou castigando Ezildo, que além de muitos remédios precisou se empenhar ainda mais para evitar falar palavrões toda vez que sentia aquela terrível dor de cabeça durante o trabalho: fechava os olhos bem apertado, respirava fundo e continuava a sorrir mortalmente para toda a humanidade..

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Desencontro*

A viagem de ônibus demorava mais ou menos três horas. Três horas de viagem, sem companhia, observando as paisagens que se seguiam pela janela: planícies, elevações, curvas, descampados, matas, casas simples e bairros pobres. Não se via mar, sendo possível apenas pressenti-lo. 

Em breve chegaria, depois de esperar algumas semanas. Em breve haveria um reencontro, outro reencontro em uma relação feita de reencontros, na qual pouco se viam e muito se falavam. Quantas vezes já não experimentara aquela sensação, misto de expectativa e saudade, mas naquele momento havia algo de diferente nos olhos refletidos no vidro, acompanhando as paisagens. Poderia ser cansaço, talvez fosse tristeza. Não era alegria, nem excitação. No ônibus quase vazio, o silêncio dos corredores se juntava ao barulho dos motores. Um breve cochilo.

Beijos e mãos dadas. Casa. Breves momentos de prazer. Palavras que raramente se encontravam, pouco além de coisas pequenas. Deitados, juntos, experimentava aquela sensação, como se os olhos estivessem sendo mais uma vez refletidos no vidro, mas não havia paisagem do outro lado.

Beijos, abraços e um olhar de adeus. Embora não soubesse, não haveria outro reencontro. Haveriam de se falar, mas nunca estariam novamente deitados um ao lado do outro. Aqueles momentos haveriam de ficar para trás na paisagem, perdidos entre muitas curvas, como a lembrança do mar escondido atrás de casas simples e bairros pobres. Só acordou com as luzes da cidade que a esperava.

.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Bem-Te-Vi*

Sesta de domingo: do meu quarto, ouço o bem-te-vi a conversar; do meu lado, sinto o perfume de mulher dormindo.

Uma ilha de tranquilidade paira sobre a tarde. Tons de amarelo e laranja, claridade e luz, penumbra e sol, se misturam - tumultuam, como o som dos passarinhos lá fora. Tornam-se vontade, devaneio: eis uma crônica - impulso, desatino e a lembrança dos primeiros cânticos, quando não havia lira, apenas árvores, apenas música. O homem aprendeu a cantar olhando para o céu, imitando o bem-te-vi.

“Bem-te-vi! Bem-te-vi!” Assim me comovi: o bem-te-vi me fez sentir.


.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Voo*

Tem passarinho que só canta
Quando chora
Ele voa, ele voa
Quando chora
O céu é mais comprido
Ele voa, ele volta
Quando pousa
Ele sonha.

.

sábado, 29 de maio de 2010

A Conta de Luz Chegou!*

Amor, a conta de luz chegou!
Enfim, esse é o nosso lar
Deixa o papel pra depois...

Amor, o mês 'inda não virou
A semana já passou
Não deixe a louça pra depois...

Vou na janela e vejo o dia
Tão lindo lá fora - bom pra lavar!
As roupas sujas do cesto
O sol vai secar na hora

A geladeira chegou e mudou nossa vida
Agora é outra, só que a mesma rotina
Almoço, café e janta
Tem sempre que ver o que vai ter

Nas férias, eu visito a família
No fim, até que a gente se vira
Com o tempo a vida se ajeita
E a casa precisa estar limpa

.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Três em Três*

Ou Tercetos Livres

Eu estou só pensando
e enquanto penso
vou escrevendo.

Eu quero só sentir
e ter consciência
do que sinto.

     * * *

O cotidiano
é minha filosofia
minha religião.

Vivo uma narrativa épica
invisível:
tudo é muito em vão.

    * * *

Eu quero
o verso, a música
a beleza e a tristeza.

Apenas isso:
se calo ou escrevo
é porque estou vivendo.

.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Por Isso*

Ou No Final do Dia.


Me leve ao silêncio
Ao seu regaço.
Me livra do cansaço.

Porque hoje o dia me gastou
Usou meu tempo, minhas pernas.
Quebrou meus membros.

Por isso eu queria ter descanso
Chorar de tanta beleza
Lendo um livro
Lembrando a nudez...

Só não me peça para falar
Nem pensar.
Não quero resolver.

Por isso quando paro
Faço versos
Como quem chega em casa
E se deita na cama
No final do dia.

Por isso, no final do dia...

.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Arrupiu*

Arrupiou, e é, e foi?
Pois eu me vou
Sem saber, sem chegar
Só de ir, já passou
Quando vai ver, acabou
Finjo que vou, não vou
Fui indo, me fondo
Quem não viu, não lembrou
Quem viu, nem ligou
Nem aí, nem eu com isso
Nem ninguém com nada
Ou, não; né, não? sei não
Sei só que sim
Arrupiou, sentiu, já foi.

.

terça-feira, 2 de março de 2010

Penélope Cruz*

"Não quero lirismo que não seja fruição"
.
Eu não a conhecia. Ela saiu do banho - este momento de tanta feminilidade -, enrolada em uma toalha branca; os cabelos presos, a nuca, os braços e as pernas nuas, frescas. Caminhou na sala escura e vazia e parou em frente a uma grande janela cortinada. Trivialmente.

Eu exitei, mas minhas pernas não. Fui em direção a ela e me aproximei de suas costas. Apenas os ombros visíveis, turvando minha razão, movendo por dentro - toda sensualidade do mundo naqueles ombros. Mordi seu pescoço. Ela se assustou, de leve. Continuei mordendo suas costas. Ela se permitia.

Depois estávamos de frente. Ela sorria, um suave movimento dos lábios, apenas. A expressão nos seus olhos transformava o absurdo e o desejo em beleza e serenidade. Agora estávamos no chão. Minha mão ansioasa se adiantava. Dentro. Úmida. E, naturalmente, provei. Ela comprime os olhos, morde os lábios, e suas sombrancelhas arqueiam toda a sensualidade do mundo. Toda a sensualidade do mundo naquela expressão.

Daqui em diante o sonho começa a mudar, a sala fica iluminada, e surgem outras pessoas. No meio desta imagem confusa, permanecemos sentados no chão; eu disfarço minha nudez atrás de seu corpo e ela, também sem entender, se cobre com a toalha.

* * *

Certa vez classifiquei Almodòvar como "belo e doentio". Assim é o desejo. Assim somos nós.

.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Sereia do Alado*

Queria escrever, uma historieta assim, bem psicodélica, sem pé nem cabeça mesmo, juntando cabeça de homem em corpo de cavalo: a leseira de um amigo meu, que se chama a Sereia do Alado.

Sentido mesmo, como não tem, precisa ser inventado: menina moça, mulher e louca, de batom na boca,  nasceu pra ser "artista", virou cantora de forró. Ela era uma sereia, peixe-morto fora d`água, e vivia no Alado, que pode ser tipo um povoado, onde mora gente crua, ouvindo ela cantar desafinado: "Meu amor, não faz assim, que eu sou sua/ Você me traiu, me trocou, me deixou na rua" - choradeira que todo mundo sabe porque acha que amar é mesmo assim.

Tanto é que a melosa melodia persuadia: a sereia dava show, grunhindo seu versado, jogando pra todo lado seu cabelo esgranhado, requebrando adoidado e deixando tudo besta os cabra do Alado. Foi quando apareceu um empresário - de bigode e peito à mostra -, oferecendo oportunidade, chance única de enricar: garantia de sucesso!

Tanto foi, que dali pro camelô, um pulo foi; em nem um ano, tudo quanto era carrinho de som estardalhava: "Meu amor, não faz assim, que eu sou sua/ Você me traiu, me trocou, me deixou na rua". A Sereia do Alado era o cd pirata mais vendido da parada.

Agora, quando a gente liga a tevê, vê a desgramenta gemendo com a voz  ruim e toda esculhambada; fez plástica na cara, mas ainda anda com aquela boca pintada - exu-maria, cavalo do cão, coisa mais malassombrada, fechando de salto, gritando mais alto, descendo até o chão, abalando na balada -;  anuncia o apresentador: com vocês, a sensação do momento, a maior cantora de brega, forró, maxixe-pop, a Sereia do Alado!

.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Jeremíades*

Jeremíades, também conhecido pelo vulgo "Jera", cursou todo o ensino básico e acabou virando catador de latinhas  e entulhos em geral. Nunca teve gosto pela bebida, mas sempre viveu em conflito dentro de casa, por conta de sua "loucura" aparentemente congênita. Não se entendia com pais, irmãos e professores. Preferia perambular sozinho pelas ruas, terrenos baldios, riachos, matagais.

Fugiu de casa quando já era quase adulto. Pegou uma briga de faca com um fulano que maltratava dois burros de carroça. Saiu ferido mas deixou furado o destratante que judiava dos bichos: "Pra que fazer isso com os pobres, seu animal?!"

Viajou por estradinhas e cidadezinhas recolhendo o que poderia ter algum valor e trocando para ter o que comer. Conforme ia se quedando nos lugares, arrumava companhia, mas nunca amigo gente, "tudo uns animais". Criava cinco cachorros, a sua família.

Até que um dia Jera achou um sitiozinho ameno, bem abandonado no meio do interior, e resolveu parar um pouco. Estava cansado de tanta andança por aí - os burros mereciam repousar. Juntou tábuas e papelão, improvisou uma vidinha cotidiana com os bichos e se estabeleceu quieto por ali. Sofreu calado e mudo quando tempos depois adoeceu e morreu um dos seus burrinhos, que atendia pelo nome de Pedrez. Cachorros não faltavam.

Ficou tanto tempo sozinho que, sem preceber, foi murchando sem sofrimento em sua solidão.

Morreu quase velho. Dava pra ver que os bichos sentiram a falta dele. Mas depois foram se perdendo pelos terrenos do mundo. Só o outro burrinho, que atendia pelo nome de Frederico, continuou pastando por ali. Até um dia também murchar de solidão.

.