terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Um Canto*

(Lyric)

Cada pássaro com seu canto
Há tantos modos
De se encantar
Sutis, sonoros
Agitados cantos
Não há por que julgar
O mais forte ou mais belo
Se é baixo ou é soprano
Bom ouvido sabe apreciar
O que no fim é o mesmo canto
Um mesmo canto
Assoviando, mesmo fraco
Sem voar, segue cantando
Em muitos cantos
Busca encanto
Passam outros pássaros 
Saboreando a brisa, por enquanto.

domingo, 8 de dezembro de 2013

As Moscas*

(Repost 22.07.08)

A mosca surgiu imediatamente quando me viu
- Era enorme -
Não importava para ela que eu ainda estivesse vivo
- Nem eu mesmo sabia se estava morto -
Mas como doía a vida, sabia que vivia, desejando a paz da morte

Como não se importava, a mosca mergulhou em minha morte
- Amarela e líquida no chão -
Indiferente a minha pouca vida
Sabendo que era só uma questão de tempo

Acima de mim, um radiante teto azul
Indiferente a todo carinho e sofrimento
- Eu era a mosca, e não podia dizer adeus -

A dor não julga; eu já não pensava
Meu único verbo era um grito desesperado
Minhas ideias, um delírio de dor e ódio
- Por estar vivo -
E um clamor desesperado para que cessasse
- A vida ou a dor -

Se um dia o mundo se acabar na convulsão de uma cólica agonizante
Não chore
Não grite
Não desespere
Não clame

- Era enorme, e indiferente -

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nordeste*

(Repost 12.04.08)

Há no horizonte um continente de nuvens.
Almoçamos tainha, peixe em posta,
macaxeira que derrete na boca,
conhecemos os donos e filhos do bar,
somos amigos cordiais,
percorremos pequenas estradas do interior:
o Nordeste é um sentimento
de palavras, costumes, paisagens.

Há no fundo uma gravidade ontológica
a permear o suspiro profundo,
o sincero sorriso de canto,
a tranquilidade de estar.

Há no fundo uma tristeza que não é triste
- que por falta de nome é vontade de amar -
Conhecer muitos lugares, percorrer distâncias
Em busca de nada, uma liberdade congênita
Ter descanso de rede, balançar à meia luz - casa limpa.

Mas ter também regaço de colo, de carinhos
convulsivos, loucos, de união absoluta e impossível.
Aquietar em bom sentir
Sabendo o interessante, desistir dos porquês:
será o dessentir o estado ideal de existir?

Os prazeres não explicam,
o vazio, a natureza,
pois a consciência há de continuar incomodando
mesmo que a vida seja um óbvio
e insignificante caminho para a morte.
Quem sabe quando a paciência for
um verdadeiro gesto natural
certeza de realidade e prática.

Quem sabe assim
Fechar os olhos
A vida passando
A vida passando...

domingo, 24 de novembro de 2013

Causo de Quase Morte*

(Repost 22.01.08)

Morri, por algum tempo. Não lembro de nada, nem fui lembrado: morrer é não lembrar.

Dizem que um rapaz caiu nas pedras. Socorreram-no, verificaram lhe os olhos, o pulso, e pensaram não mais haver vida em meio ao sangue. Talvez eu seja esse rapaz. Ao menos, temos essa cicatriz em comum.

Um amigo sempre que podia me contava o que tinha lido em um livro: que quando estamos à beira de um abismo, escutamos um chamado dele a nos convidar. É possível que eu tenha aceitado o convite.

Fico imaginando meu corpo - ou do rapaz -, triste e sem vida, sobre as pedras, e sinto pena. Não sei bem por que, mas sou capaz mesmo de chorar. Não vejo maior significado em minha morte do que essa comovida tristeza que sinto. Eu teria enfim encontrado o mar.

Lembro-me de outras vezes em que quase morri, por acidente, ou pelo amor que não encontrei, e no fim, resta-me essa comovida tristeza.

A vida insiste.

E o seu filho persiste, mãe.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Passarinho*

(Repost 28.06.08)

Muitos dos que leem devem ter tido, quando criança, um relacionamento afetivo com árvore, se pendurando nos galhos - aos gritos das mães -, colhendo frutinhas, construindo casinhas e brinquedos. Acredito que minha geração seja provavelmente a última a contar com uma dessas histórias de árvore. E o mesmo acontece com as ruas de terra e com as brincadeiras em rua de terra, a pipa, o peão: jogos que não interessam mais a geração dos apartamentos e videogames.

O que não tive foi a oportunidade de caçar passarinhos. Não pela caça, obviamente, que é atividade muito maldosa, mas pelo prazer do contato com esses bichinhos encantadores, tê-los na palma da mão, conhecer suas variadíssimas espécies e cores e cantos. Não é a coisa mais bonitinha um passarinho andando, aos pulinhos?

Lembro-me do meu pai contando histórias de passarinho: investidas, negócios, cuidados. Um de seus maiores arrependimentos, segundo ele, era ter matado alguns passarinhos. Por isso, sempre que penso na palavra remorso me lembro de passarinhos. Aprendi a nunca permitir esse sentimento, e a ser bem quietinho, como quem espreita passarinho.

Já pensei em criar um calopsita em casa, mas o cativeiro é sempre uma judiação, e felizmente minha preguiça é sempre maior do que planos tão audazes. Já pensei também na hipótese de me tornar um “passarinhologista”, espécie de biólogo-fotógrafo amador, para estudar e saber tudo sobre passarinhos - ideia que, ao que tudo indica, terá o mesmo fim das outras.

Passarinhos são tão bonitinhos que dá até para conversar sobre eles sem ter a preocupação de dizer nada mais além de sua beleza; sem precisar fazer nenhuma consideração importante e séria sobre a vida. Só a palavra passarinho já é bonita: passarinho... Arte boa é assim, existe quase que naturalmente, um encanto em si, que surge sem a mão e a razão bruta do homem. Basta concentração e atenção para avistar uma, como a um passarinho. Com empenho e sorte, pode até ser que um atravesse a janela e entre em sua casa, pouse em sua cama, abra o seu livro favorito e repouse tranquilo - com todo o esplendor de sua plumagem à mostra -, cantando algumas levezas em palavras, como em um belíssimo e epifânico voo emoldurado por uma pintura que nasce diante de seus olhos emocionados.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Crônica Sobre uma Viagem de Ônibus*


Logo cedo, antes das oito, o povo indo trabalhar...

O motorista, ao invés de virar no farol à esquerda, continuou em frente. Não sei se pelo horário, ou se pela segunda, ninguém reparou, ou teve preguiça de perguntar - sentados, ouvindo música, falando a língua do cotidiano, e dos ônibus.

Eis um fato extraordinário, ninguém reclamar, gritar que aquele não era o caminho certo, permanecer em uma viagem sem saber o destino certo. Isso sim seria um absurdo.

Mas estranhamente, houve este momento fantástico, surreal, em que todos inebriados pelo começo do dia se deixaram levar à luz ainda amena do sol, como que amanhecendo a realidade.

Da janela, ruas, calçadas, pessoas... Tudo que vem dos olhos.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Losing Life*

You live a story
then you die
every time it ends
you live
then you feel like losing life
and this is living
lose life
like you once knew
even knowing
it was and is always
supposed to be like this
no matter if you were born
or chose to be like this
that’s the way it is
that’s the way it is...

domingo, 1 de setembro de 2013

Cabra Homem*

(Repost 16.05.08)

Dizem os especialistas em linguagem que o homem não seria possível sem que se comunicasse e significasse através da magnífica e simples complexidade de uma língua; o que permite atribuir ao esplêndido homus erectus a nobre qualidade de humano, este capaz de alcançar elevadíssimos sentimentos e realizar importantíssimos empreendimentos.

Uma das características que tornam possíveis tais singulares e fabulosos feitos, segundo os especialistas, é a maneira como a linguagem se estrutura, valendo-se de duas articulações fundamentais: a de distinguir uma partícula sonora de outras, como um "p" de um "b", por exemplo, e agregá-las a outras de forma a constituir um significado, "pobre"; e uma segunda que articula a diversidade de significações possíveis a formas restritas, como o infinitivo de um verbo "-ar", que ao mesmo tempo pode ser o "ar", da palavra que respiramos.

Pois eu estaria discordando dessa incrível e supostamente única qualidade, que distingue o homem do animal, o qual tem sua linguagem limitada a pouquíssimos elementos, como "alimento, cópula, localização"; uma abelhinha não pode com seus zunidos dizer a seu parceiro que o ama, ou que as flores daquela tarde de primavera a fizeram lembrar do sabor de um mel colhido há tempos atrás – triste condição de inseto, pensarão os de bom coração – como não poder amar e lembrar?

Mas, afinal, o que tem o homem de tão diverso, necessário e sublime para significar? Por mais que me esforce para ouvir, expressar, conhecer, não consigo encontrar mais do que um vasto – sem dúvida –, mas numerável repertório de palavras e modos de falar para uma meia dúzia de conceitos que vão sendo atualizados e contextualizados ao longo do tempo e do espaço. Tenho mesmo a audácia de dizer – mas não sem algum respaldo de preguiçosamente ter tido contato com algumas reflexões, modernas ou antiquíssimas, do oriente ao ocidente, sobre o que e como é ser esse ente formidável, humano –, que toda discussão mais profunda, e o sentimento mais visceral, podem ser reduzidos, sintetizados, em alguns poucos e grandes conceitos, orientados de acordo com algum ponto de vista: amor-vontade-desejo, morte-impermanência-religião, et coetera...

Por isso acho tão encantadora a conversa das cabras que pastam no terreno atrás de onde moro. Não estarão elas a dizer e considerar as mesmas coisas que nós? Em linguagem de cabra, devem estar a questionar: "Paixão é novidade antiga?", no que eu consinto: "É..."; "Ali tem mais capim", "É..."; "Aquele bode com um chifre só, esquerdo, é o diabo", "É..."; "A Grande Cabra há de nos guiar e salvar!", "É..."; "Ó, como amo, para todo o sempre, a mais bela e alva das cabritas!", "É..."

Muito provavelmente é também devido a toda essa cabritagem que acabo de especular que costumo pouco me espantar com a variedade do gênero dos homens, vindos das mais distantes e inusitadas culturas do globo, que vêm me contar seus causos e histórias, assuntos urgentes, de sujeitos satisfeitos e possuidores de uma alma que os tornam todos muito especiais.


"É..."

domingo, 11 de agosto de 2013

Pés de Planta*

Vejo tantas obras pela cidade, bairros surgindo, em construção. Mas não há árvores em seus projetos... tão triste. Não há verdadeiro progresso sem árvores. Não há qualidade de vida, nem macaquices de infância sem árvores.

Lembro de algumas que continuam plantadas na memória: o pé de pitanga no terreno baldio; a goiabeira de pele escorregadia, perigosa, e o coqueiro com riscos de traumatismo craniano nas casas das avós. No quintal dos meus pais tinha pé de mamão (que dava para arrancar canudos e fazer bolinhas de sabão), e tinha pé de ameixa. Uma das minhas maiores surpresas da vida foi acordar um dia de manhã e ver que tinham filhotes de melancia no quintal; deduzi que foram os caroços jogados depois de comer. Deve ter sido tão fascinante por ter acontecido aquela única vez, sem terem sido plantadas, sem serem esperadas – epifania de quintais. Não duraram muito, e não lembro tê-las comido.

Depois que viajei, encontrei pés de araçá, fruta que não conhecia. Colhia com as mãos e comia ali mesmo, sem precisar lavar. E ruas cheias de pequeninas mangas pelo chão, como pedras esverdeadas, enfeitando os caminhos de natureza.


Outras tantas esqueço, e não faço a justiça de mencioná-las. A memória às vezes nos faz saborear esses momentos, tão distantes, tão sem razão de ser – ou escrever. Que sirva então de apelo às autoridades inexistentes, ao bom senso dos construtores de cidade e moradores dos bairros do mundo: precisamos de jardins e árvores em nossas vidas.

sábado, 27 de julho de 2013

Sapato Usado*

Há tempos atrás
pendurei minha alma
no muro em frente de casa
como sapato usado
para que alguém precisando
passasse e levasse
pois era algo assim tão acessório
dessas vestis inventadas pelo homem
a fim de eternamente perpetuar
sua vaidade
a qual não me servia
dando mais prazer a caridade
de me desfazer
ao invés de deixar ali guardado
aquele objeto transparente inútil
com a vã esperança de um dia poder usar
em ocasião de gala
e suma importância para tantos
quando o melhor é caminhar descalço
pelo cotidiano.

A Sua Mão*

De um céu
ou quarto escuro
surge a imagem
ou necessidade
de uma mão
nunca estendida
para alcançar
suas lágrimas
tão confusas
e te salvar da angústia.

Lamento dizer,
mas essa mão nunca virá
apenas dias e anos
impiedosos
trazendo a cura
ou a amargura
do esquecimento.

Essa mão
que vem de dentro
não pode te arrastar
trazendo falsas esperanças
explicações possíveis
ou a ilusão de um eterno presente.

Essa talvez seja você
que só encontrará
a paz do encontro
ao encontrar
sua própria mão.

sábado, 20 de julho de 2013

A Caça do Polvo*

(Repost 11.02.08) 

O correto seria dizer "porvo"; ou "poivo". Pois este se escondia debaixo dos parrachos, que são um tipo de formação de recifes.

Um com pedra, outro com ponta de ferro e mais dois caçoando, os pescadores tentavam em vão encontrar o bicho para juntá-lo a seu amigo, que jazia morto em uma lança. Desistiram do astuto, mas continuaram a busca.

Confesso que dos seres que habitam o mar, o polvo desperta-me pouco afeto. Por outro lado, seria eu capaz de tecer uma verdadeira ode ao magnífico camarão. Não obstante minha empatia para com o pobre molusco, resolvi seguir o grupo, de perto, quase longe; contente por participar, ainda que indiretamente, deste evento tão natural, e para mim, tão belo quanto inusitado. E enquanto o fazia, nutria comigo o sonho de avistar um polvo; imaginava a glória de indicá-lo aos pescadores e assim ser promovido à posição de ajudante de caçador de polvo, ao invés de reles observador. O que não aconteceu.

Espectadores que assistiam à passagem da caravana declararam que polvo fica uma delícia com arroz e brócolis; porém, nesse dia, os polvos pareciam não conformar-se com tal destino e permaneceram bem escondidos nos parrachos.

Algum tempo depois, parte do grupo desistiu, parte insistiu um pouco mais na peleja – acredito que sem sucesso.

Abandonei a expedição e prossegui minha caminhada ao sabor de uma brisa, contente com a breve aventura e com planos de investir em outras do gênero.


Almocei camarão.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Trânsito*

(Repost 18.05.08)

Em um jornal da manhã passava uma matéria sobre o trânsito de São Paulo – imagens aéreas, o mar de edifícios, frio, céu fechado. Senti tanta saudade. Sim, é absurdo ter afeto por uma coisa dessas, que só atrapalha a vida do cidadão citadino. Mas a distância permitiu a mim, cidadão longínquo, que sentisse um verdadeiro afeto pelo tráfego mais do que intenso daquelas ruas e lugares pelos quais um dia já estive eu, fatigado e triste por estar preso em congestionamentos, de pé, no ônibus, com outras centenas de pessoas me fazendo uma desconfortável companhia, ou assistindo pela janela – sempre sonolento – a correria do mundo lá fora, cinza e nublado, como muitas vezes estava o tempo do sujeito que olhava cansado do outro lado da janela.

Eu tomava café enquanto assistia ao programa, e sorria - aqueles lugares.

Café foi um gosto que aprendi com minha vó, mas que cultivei com empenho e seriedade em São Paulo. De manhã, no intervalo do almoço, de noite, para aguentar o trabalho e as aulas da faculdade; com chocolate ou cigarro. Bebida amável, e necessária.


Mas, além do café, o paulista também precisa de outras coisas. Pizza, por exemplo. Refeição do cotidiano, bem ajustada à cidade. Ruas. No meio de tão enormes proporções, falar de ruas, localizar-se, também faz parte da cultura de um paulistano. Torna-se um hábito, uma linguagem: subir a Teodoro, que é paralela com a Cardeal – a Capote e Oscar Freire cruzam a Cardeal –, passando pelas Clínicas, Dr. Arnaldo, (saudoso bairro de Pinheiros; bairro no qual desejei morar quando fosse adulto) chegando na Paulista – avenida cheia de vida, atarefada, muitos eventos –, ou seguindo pela Consolação, a Sé – imponente. São tantos caminhos... E trânsitos. A Marginal, Rebouças, Vergueiro, Francisco Morato, não faltam via crucis, das quais me lembro com essa saudade de um caiçara, emigrante litorâneo, que durante algum tempo foi acolhido com a violenta generosidade da tumultuada e apaixonante capital.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A Maré*

(Repost 03.10.06)

E ali era o mar
Não era você
E ali era a chuva
Não era a tristeza
Era o meio-dia
Tão azul que eu quase caía

E ali era o mar
Não era você
E ali era a chuva
Não era a tristeza
Era a embriaguez
A natureza que me sorria

E a maré leva o que era

quarta-feira, 15 de maio de 2013

A Modernidade e o Jambolão*

(Repost 27.06.08)

Memórias, da infância ou de toda vida, costumam ser um bom mote para crônicas. Estava a ler uma dessas, que me causou lembranças e vontades de uma do gênero. Reminiscências são alimento para muito pensamento.

E o que me ocorreu de contar foi sobre o pé de jambolão do meu bairro, da minha infância. A árvore era enorme, corpulenta, pertencia a mais de um terreno e seus galhos cobriam boa parte da rua. As frutinhas eram até gostosas, mas manchavam mãos, roupas, casas e calçadas, o que era considerado um problema. Não era uma árvore habitável para molecagens, como as divertidas pitangueiras e o chapéu-de-sol, mas era bom ouvir os passarinhos que no final da tarde vinham e faziam uma enorme festa, gorjeando altíssimo. Mas, como não poderia deixar de ser, o tempo passou, trazendo a modernidade e os negócios, e a árvore precisou ser cortada para dar lugar ao estacionamento de um supermercado. Soube que no dia houve manifestações de desaprovação, uma senhora chorou, e eu mesmo quando vi aquele vazio deixado me senti muito triste, indignado. A modernidade sempre chega; chegou para aquela árvore e chega para nós, embora choremos e relutemos contra suas motosserras e asfaltos, contra suas recentes opiniões que vêm incomodar nosso mundinho já certo em seu erro de ideias bem acomodadas.

Um pouco antes, nessa mesma época, trocaram os antigos paralelepípedos de concreto - que segundo uns ajudavam a dar o ar de cidade praiana - pelo asfalto de piche, muito mais adequado à modernidade. Acompanhei a transformação na companhia de familiares e moradores, que me contavam sobre inúmeros acidentes de trânsito que estavam acontecendo. Reparei que a cidade sofria se adaptando à transformação do asfalto, que trouxera outra velocidade muito mais acelerada à cidade acostumada ao antigo ritmo dos paralelepípedos e lombadas; agora os pedestres e ciclistas - vale a pena citar que a bicicleta é o principal meio de transporte da cidadezinha - tinham que se acostumar e prestar mais atenção com os carros que agora voavam baixo. Voar é coisa da modernidade. E na modernidade tudo é muito rápido.

Como na cidade grande, a metrópole, que é muito filha da modernidade, onde tudo é muito acelerado, inclusive nós, pessoas humanas, que provavelmente ainda teremos muito que se acostumar com toda essa velocidade, pois a correria do dia-a-dia não parece fazer exatamente bem às máquinas com coração e cérebro. Dói, mas também é bonito de ver, na cidade, as coisas tentando funcionar.

No interior é um pouco diferente, o tempo é outro, e até o rápido é mais devagar. Anda-se mais com as pernas, vendo coisas que próprias do interior: pessoas passando a vida na janela, na porta, em frente de casa, jogando conversa fora com os conhecidos - ou nem isso. À noite, têm amigos que se reúnem na rua mesmo, para beber, jogar cartas, alcovitar; para desperdiçar a vida com a tranquilidade dos interiores, onde o galo acompanha, cuidadosa e seriamente, as galinhas a atravessarem a rua, e os terrenos são baldios para que as crianças joguem bola e sonhem em ser grandes jogadores de futebol; interior onde há sempre muito mato para os bichos e resquícios de uma vida natural, com mangas caindo pelas calçadas e araçás ao alcance de qualquer fome; e onde é sempre bom manter-se informado sobre a tábua das marés e a cotação do camarão.

Os interiores são bacanas; os exteriores também. Há muita modernidade misturada à vida besta, mas nem sempre tão simples, de vários interiores e lugares; inclusive em Marte. Nossa tecnológica modernidade sonda até os buracos de outro planeta, é incrível. Mas é possível que em nosso planeta mesmo mal saibamos o que seja afinal essa tal de modernidade: talvez seja o visual sempre arrojado dos jovens, os relacionamentos cibernéticos, novíssimos utensílios domésticos, o bluetooth. De qualquer forma, na modernidade parece não haver espaço para pés de jambolão; quem quiser ter o prazer de se sujar com as frutinhas, terá de buscar um interior - mas que vá rápido!

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Veneza*

(Repost 31.08.07)

Nunca fui à Veneza. Mas acabo de receber, de uma querida e dedicada amiga, alguns retratos desse lugar que é, sem dúvida, de uma beleza ímpar. Respondi contando a minha breve impressão: "Os canais de Veneza me lembram labirintos que, com suas casas pequenas e rústicas, dão um certo tom melancólico ao lugar: lindo!" Ao que acrescentei, um pouco tímido: "Já pensou ser um gondoleiro quando crescer?"

Sei o porquê dessa timidez: obedeci ao meu singelo impulso de dizer o quanto sou capaz de fantasiar, mesmo fazendo questão de cultivar a realidade nem sempre tão bela que se apresenta. E me aproveito deste momento para desfrutar um pouco mais dessa ternura que insisto em sentir: eu, um perfeito gondoleiro, empunhando meu remo de estimação, vestindo um fino bigode, chapéu, uma blusa listrada de vermelho, cinto de corda, calça e sapato, ou seja, um autêntico gondoleiro veneziano, a guiar pelos charmosos canais os inúmeros casais, verdadeiramente apaixonados, rumo ao paraíso de amor que sonham...

Essa imagem tem para mim alguma simbologia muito íntima, como se nessa minha vida, tivesse eu a vocação de ser aquele discreto terceiro a navegar junto aos que gozam da felicidade.

Ah, Veneza, Veneza! Que humilde e sincera emoção sinto em imaginar-te!

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Crendice*

(Repost 11.12.07)

Eu me lembro de ser pequeno e ouvir da conversa dos adultos que as dores de quem tinha pedra nos rins eram as piores dores do mundo, as únicas comparadas às dores do parto, e que não havia jeito nenhum de fazer com que as terríveis dores parassem. Até homens choravam.

Lembro-me de ter ficado com muito medo, e de ter desejado profundamente - na época, quem sabe, ter inclusive pedido a deus - nunca sentir essas dores. Batata: cresci, e tive pedra nos rins. Confirmei que as dores eram mesmo insuportáveis, e que infelizmente não havia exagero no que os adultos disseram.

Mais tarde, vim a descobrir que as pedras nos rins eram tecnicamente chamadas de "cálculo renal". Achei bonita e elegante a designação técnica, principalmente por ter sido capaz de reconhecer, com meus parcos conhecimentos em latim, que cálculo, aquele mesmo das operações aritméticas, queria dizer pedra, e supus então que os matemáticos de antigamente, não dispondo de calculadoras, faziam contas no chão, ou com as mãos, usando pedrinhas.

Recentemente, em uma conversa com amigos, brinquei e disse que eu só fui ter os benditos cálculos renais porque quando criança eu ouvira desavisado suas assustadoras histórias, e tive tanto medo que acabei desenvolvendo a doença. Assim como nos advertem algumas das famosas crendices populares, do tipo: "Não pode deixar a criança com vontade, senão fica com lombriga". Tive medo, acreditei e me nasceram pedras nos rins. Talvez a psicanálise chame isso de psicossomatização. Nos meus tempos de criança, era só verdade.

Enfim, quando contei a história para meus amigos, eles, com toda a razão, zombaram de mim e da minha hipótese absurda, no que eu retruquei, participando da graça: "Vocês já sentiram alguma dor no pâncreas? Já ouviram alguém se queixar de dores no pâncreas? É óbvio que não, porque ninguém lembra que o pâncreas existe!" Rimos e concordamos com a teoria. Na verdade, concordamos tanto que, um dia desses, um dos amigos se encontrava em leve desalento e desabafou dizendo: "É só a gente não acreditar e tomar cuidado para não lembrar que existe coração, aí a gente não sofre".

Na dúvida, é melhor não acreditar.

sábado, 13 de abril de 2013

Quando a Primavera Morreu*

Quando a primavera morreu
nos lençóis, em todos os lugares
outrora conjugados, todos os espaços
uma estação que se estendeu
para toda uma vida
e então se acabou – transformando-se.

O sol brilhou, e no verão houve calor
que se espera durar,
enquanto respirar for possível.

As folhas caíram, aos poucos
notando-se, sem acreditar
que a vida e o tempo passam
acreditando no por vir
mesmo sabendo que no fim – há o fim.

No inverno, espera-se coragem
para aguentar o frio
suportar, mesmo que tremendo
vivendo, porque assim é preciso
e no final ser grato, por tudo que se passou
dolorosamente, existindo na vida de outros
enquanto na sua própria
nunca se sabe, nunca se soube
mas continuamos, dolorosamente
com todo o amor
que é possível existir.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Pernilongo*

(Repost 17.08.07)

É com alguma graça que admito ser carente e implicante. Tenho o direito humanitário de me contradizer ao precisar de outra pessoa mesmo desejando não precisar. E faço isso sendo o mais implicante possível: reclamo de tudo; vejo coisas erradas nas coisas mais simples; acho feio o que acham bonito; rio com sarcasmo do sofrimento alheio; resmungo minhas dores nos ouvidos ocupados; dou chiliques histéricos quando não concordo; esperneio se não tenho; suspiro caras de tédio...

Em suma, sou inconveniente ao extremo, assim como um pernilongo, carente por qualquer resquício de um sangue cálido que não lhe pertence, azucrinando com sua terrível e incansável lamúria o sono que é tranquilo.


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

How Far It Goes*

(Lyric)

I was dressed in black
She was dressed
Yeah, not everything is perfect
Late at night, the year was new
She was swimming at the pool
Making me feel like a fool
And I was just wondering
How far it goes…

Walking at the beach all night
I was feeling alright
The night was hot, hot, hot
The bodies were hot, hot, hot
The water was dark, cold – shock!
But I went so far away
Feeling dark, cold, wondering
How far it goes...

She was swimming at the pool
Making me feel like a fool
And I was just wondering
How far it goes…

Late at night, the year was new