terça-feira, 26 de maio de 2009

Chuva na Praia*

Não era preciso saber o destino,
não era preciso que o tempo estivesse bom,
não era preciso falar.

Horas de estrada
de olhar perdido
na paisagem
passando
na janela

Ao encontro de não estar
por alguns dias
andar debaixo da chuva
parar debaixo da chuva

E ver em tons de cinza
céu, nuvens, praia
pássaros
silêncio
o mar respirando
uma brisa fria
sob a névoa da chuva fina.

Sombras caminhando na praia
dentro da névoa
debaixo da chuva fina

Sombras paradas em frente ao mar
pensando em silêncio
respirando a chuva fina

Longe de qualquer coisa
do outro cinza

Distantes
em frente ao mar
tons de cinza
névoa
e uma chuva fina.

.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

2011*

Decidi escrever essas linhas para me aproximar daqueles que amo e que não mais tornarei a ver. Procurei papel e caneta pelos escombros, e com estas memórias passarei meus últimos momentos, da mesma forma que outras pessoas ao redor do mundo esperam deixar a marca de que um dia existiram, sem, contudo, acreditar em uma posteridade.

Assim como fomos acostumados a imaginar, também achei que o fim dos tempos aconteceria sob a forma de um terrível apocalipse, com anjos das trevas incendiando o mundo, uma invasão alienígena devastando a terra ou mortos-vivos devorando nossos corpos. No final das contas, a devastação foi a mesma. E poucos restaram, ao menos até aonde minha realidade alcança.

A sede, a fome e a doença são menos apocalípticas do que nossos terrores simbólicos e sempre convivemos harmoniosamente com elas, mas não imaginávamos que seus efeitos simultâneos e em larga escala seriam tão fulminantes. Enquanto ainda havia comunicação, soubemos de um vírus, uma gripe, e que providências já estavam sendo tomadas. Depois continuaram proliferando notícias desencontradas por todos os países, até que o pânico se instaurou após uma população inteira definhar até a morte aos olhos de um planeta aterrorizado. Saques, êxodo, violência, suicídio, tudo em escala global enquanto a doença viajava de avião e acabava de infectar os lugares restantes; a água também fora contaminada, e quem não morria com a doença era vítima de suas consequências. Um colapso. Os mais ricos sobreviviam mais tempo, mas nem por isso podiam escapar - a miséria era agora o sistema dominante. Logo, não tive mais notícias dos meus parentes e amigos; estávamos todos isolados em nosso próprio caos. Os dias eram passados ao abrigo das ruínas que restaram de nossas fortalezas de pedra e concreto. Alguns se juntavam; outros perambulavam sozinhos até sucumbirem ao chão das ruas, até serem varridos de vez pela crescente destruição.

Minha namorada e eu fugíamos e nos protegíamos como era possível. Mas, na verdade, não era possível. Não havia proteção, não havia cura e a salvação era uma ilusão detestável - era uma questão de tempo até que chegasse a nossa vez. Mesmo nos momentos finais de desespero, relutei em procurar pelos grupos que se escondiam e sob os quais recaia o mito da sobrevivência, sendo que na verdade o que queriam era proteger dos flagelados as últimas cotas de riqueza que os restara para viver um pouco mais do que os outros. Nunca tive medo de morrer e optei por esperar a morte com a maior tranquilidade e dignidade possíveis, sem implorar por um momento que sempre tivera o seu final previsto; se tivessem havido zumbis e extra-terrestres, permaneceria até a última bala de uma espingarda, por puro lazer, assim como eu e meu amigo fazíamos nas imaginações de nossa infância; ou no caso de anjos inquisidores, aguardaria o veredicto fatal só pela curiosidade do julgamento. No entanto, essa coragem, que não bastava de descrença, não foi forte o bastante, e tive medo quando a vi morrer. Não pela morte em si e pela solidão que me aguardava, mas pela desolação do amor: angústia, desespero, solidão, falta, todos os sentimentos reunidos como os eventos desastrosos que jogaram na cara dos homens a efemeridade humana. Minha companheira havia partido, como todos os outros que amei, e eu restava só numa vida árida, deserta, odiando a espera que não me permitia estar aonde eu desejava estar.

Foi assim que, provavelmente por um desses castigos sem razão impostos a nossas vidas, durei mais uma dúzia de intermináveis semanas, rejeitado pela doença, até que a terrível secura da sede - a única coisa que se move dentro de mim - me trouxesse essa espécie de luz agonizante e trêmula, que brilha no fundo de um calmo vazio e que me permite lembrar por alguns últimos momentos.

Não sei bem por que, mas muito antes de que essas calamidades surgissem como nosso destino definitivo, nunca consegui fazer projeções de como seria minha vida depois de 2011; e, por coincidência, dessa data em diante não pudemos resistir para assistirmos e celebrarmos juntos a mais uma copa do mundo.


Paciente*

Não seria fácil questionar o valor da paciência. É bom que a vida tenha a possibilidade de seguir um ritmo tranquilo. A paciência é a prática do Tempo; é quando se permite que esse determine o acontecimento das coisas. Mas nem por isso a paciência é isenta de sacrifícios; não é uma questão de simples convicção. Pois não é a aceitação do tempo que dá origem e define a paciência: é o estar sujeito. A mesma origem do paciente que agoniza no leito desejando convalescer; do ser passivo, sem possibilidade de reagir; é a mesma origem da doença - o sofrer de uma patologia -; a mesma origem da paixão, da cegueira passional: estar sujeito ao amor por alguém. A origem dessa condição é o antigo conceito de Pàthos, e o que define esta condição é não ser o sujeito dos acontecimentos, do amor e do tempo; é ser passivo, impotente, diante do sofrimento, da doença - ser um objeto da vida, que pode ser manipulado sem que lhe sejam atendidas as vontades, sem que se tenha escolha. Só um sujeito autônomo tem vontade e pode escolher, ao contrário de um doente que está sujeito, sendo objeto do seu próprio corpo.

Como então ter paciência, ser paciente, pode ser uma virtude? Como ser passivo e simplesmente esperar que as coisas aconteçam, como um refém, de mãos atadas, que aguarda e sonha com a liberdade - a liberdade das nossas vontades? Nossos dias não permitem que esperemos; tudo acontece ao mesmo tempo e é preciso resolver, agir, fazer, produzir e ser (que, no caso, é ter), agora e não depois. Não há tempo e não há lugar para a paciência. Esperar, de certa forma, seria como prostrar-se diante da realidade e do destino, ou render-se a forças divinas que estão além das possibilidades humanas.

Mas talvez seja justamente esse o princípio que, ironicamente, nos ajude a compreender a paciência: a aceitação. Não necessariamente a aceitação do destino, ou do divino - isso irá depender das convicções de cada um -, mas o esforço e a humildade para aceitar os nossos limites e os limites impostos pelo Tempo.

Esperar costuma não ser fácil, e deixar que a vida se passe num futuro imaginário - esse tempo virtual que não existe, e por isso, é o tempo onde tudo pode ser, geralmente, bom e perfeito -, enquanto nada acontece, pode ser tão tolo como aceitar uma infalível pílula de esperança, e seguir acreditando por acreditar. Esperar não é ter esperança; a esperança é o ato de esperar. Assim como ter paciência não precisa significar ser um paciente no leito do tempo; ter paciência precisa ser o saber esperar: ser um sujeito do tempo, no tempo.

"A inteligência é boa. A paciência é melhor."


domingo, 17 de maio de 2009

Maculário*


Eu odeio aquela mancha.

Ela é esse lugar
está sempre lá.

Eu sou a prisão
ela é minha realidade.

Só não a vejo no escuro
e então meus pensamentos são manchas:
luta, escarro, dente, sangue
- sorriso e desespero.

Eu odeio aquela mancha
na parede do quarto.

Preciso, mas não há vida fora dela
ela é tudo o que vejo
tudo o que ouço
- é minha náusea.

Ela é o que posso ser.


sexta-feira, 15 de maio de 2009

Açude Velho*

(Far From The Wild)


Busquei água,
busquei a mim mesmo,
busquei paisagem.

Encontrei um açude velho
no meio da cidade.

É bonito: o sol cintilando na água...

Tinha até um pescador - numa jangada
improvisada com pneu.

Peixinhos e passarinhos
mergulhando - bicando a água.

(Sei o nome de muitas coisas,
mas não sei nomes de peixes,
nomes de passarinhos,
nomes de plantas...)

O açude é um lago
e o lago é um mar preso,
mar triste: seu horizonte não vai
até o infinito.
Está cercado.

Agora o sol está baixando
e o lago vai ficando noturno.
Não vejo mais o pescador,
a água não cintila mais.

Vou embora, vou voltar.

E a natureza ficará distante
outra vez.



quinta-feira, 14 de maio de 2009

Caminhada Noturna*

Fui andar por aí
Não se preocupe
Volto mais tarde
Quando o sono bater
Hoje não vou jantar
Precisei ficar sozinho
Pra pensar

Tudo bem que é à noite
Não vão me assaltar
Eu só não pude ficar
E padecer outra vez
Tendo que esperar

Esse barulho que fazem
Não me deixa dormir
E as tardes demoram demais
Na clausura

Minha vida não é
A ignorância alheia
Passo mal, e não vou
Disperdiçar meu carinho
Com intrigas de novela

Mas não chore e não canse
Porque eu volto com certeza
Não estive longe de você
Mas sabe como é
Às vezes é preciso

Quando eu voltar
Esteja dormindo
E então me abrace
Diga que eu demorei
E que acabou:
Estamos sós


Vésperas de São João*

Eram vésperas de São João e o menino não tinha um chapéu de palha. Sua blusinha xadrez, a calça enfeitada de remendos, o lencinho - não bastavam -; sem o chapéu ele não queria dançar a quadrilha da escola.
Sua mãe procurou em tudo quanto foi canto da cidade, mas não encontrou o bendito chapéu. O menino ficou triste, ressentido mesmo, e é dificil ver uma criança assim, calada, desanimada, perdida em uma vontade inocente que nem ela mesma sabe o tamanho.
Então a mãe disse para que ele tivesse paciência e sugeriu que ele fizesse uma promessa para ajudar a conseguir o que ele queria. Prometeu, mais querendo e chorando do que acreditando, e teve que esperar.
E conseguiu! Um pouco antes da festa, um amiguinho que já tinha usado emprestou o chapéu dele e o menino foi satisfeito dançar a quadrilha, com o chapeú de palha, o bigodinho pintado, a blusinha xadrez, o lencinho, a calça enfeitada de remendos e a namoradinha seu par. Até hoje tem as fotos.
E depois cumpriu a promessa: enfrentou a timidez, ficou de pé na frente de todo mundo que ia na igreja, agradaceu o seu desejo que tinha sido realizado e contou para as pessoas como era bom acreditar, ter paciência e saber esperar.
Até hoje o menino lembra, até hoje ele tenta se lembrar...


segunda-feira, 11 de maio de 2009

A Voz do Mar*

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)

Eu nasci na praia,
Na praia sempre vivi
Que saudades eu tenho
Da praia onde nasci

Filho de peixe
Peixinho é
Primeiro molha o pézinho
E cedo começa a nadar

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)

Nas ondas deslizei
E as areias percorri
Nas águas namorei
E o sol me fez sorrir

O amor eu conheci
E como barco vi partir
No fundo não tem medo
De morrer um pescador

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)

Do mar viemos
Ao mar voltaremos
Vida afora
Mar adentro

A vós do mar
Dorival vem cantar
O amor do homem
E a voz do mar

(Amar o mar
E não amar Caymmi
É um crime...)