quinta-feira, 23 de julho de 2009

Fluxo*

A ideia caminha na praia e se encanta pela maré
que ora avança, ora recua
calma ou bravia
levando a espuma branca
trazendo troncos
algas, peixes afogados.

A ideia reconhece em si a maré
que ora avança, ora recua
calma ou bravia
levando pensamentos brandos
trazendo triste
palavras, do peito cansado.

A maré não ouve nem vê a ideia
que ora avança, ora recua
quebrando o silêncio
com seu rugido grave.

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terça-feira, 7 de julho de 2009

Banho Quente*

Um belo banho quente, era tudo o que precisava. Quem sabe depois não teria recobrado suas forças o suficiente para sair com o pessoal.

E assim foi. Mas enquanto esteve em seu apartamento - pequeno, mas bem aparelhado, conseguido a duras penas - não lhe faltou tempo para se admirar. Sua vida era exatamente como imaginava que seria quando ainda estava na faculdade.

Tomou seu relaxante banho quente, arrumou-se com suas melhores roupas e saiu. Divertiu-se horrores naquela noite. E no resto do fim de semana ainda encontrou tempo para pôr em ordem o que precisaria fazer durante a semana.

E então, de novo a segunda, o trabalho, o trânsito, a correria - mas nada que com sua energia e vocação não fosse conseguir se sair bem, pois naquele momento só havia uma coisa capaz de lhe causar um verdadeiro incômodo: a mania de piscar viciosamente o olho esquerdo quando não conseguia controlar muito bem seu nervosismo. Cada vez mais frequentemente vinha apresentando esse tique. No entanto, resolveu não dar muita atenção; seria, provavelmente, apenas o resultado de um estresse passageiro - que logo se juntou a uma preocupação e ansiedade constantes.

Um banho quente, era tudo o que precisava. A hipótese de mudar seu estilo de vida e de alguma maneira se distanciar do que havia planejado para si era impensável. Tornou-se uma pessoa explosiva. Irritava-se por qualquer coisa. Suas relações baseavam-se em pequenas, ou grandes, agressões, o que não impediu que conhecesse alguém e com esse alguém se casasse. Teve filhos - e a explosão continuou, causando pequenos, ou grandes, ferimentos em todos aqueles que se aproximavam.

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domingo, 5 de julho de 2009

Aniversário*

"Parabéns para mim", engoliu seco. Quase vinte anos se passaram. E o angustiante era sentir que se as coisas continuassem como estavam agora, os anos passariam, mas nada - ou nada de realmente significante - aconteceria.

O último período no colégio acabara há pouco e à sua frente o futuro era indefinido como uma névoa intransponível. Sentia-se perdido nela, chorando como um menino.

Durante o dia, essa névoa se estendia por seus movimentos incertos, aos quais não conseguia dar um objetivo que o alegrasse de fato.

Esperar que alguma coisa de repente surgisse no caminho e alterasse sua falta de rumo dividia sua cabeça com anseios de fazer qualquer coisa, como viajar, arranjar uma namorada, conseguir um trabalho, comprar um carro. Mas tudo isso era muito fácil de imaginar e difícil de pôr em prática, como ele sabia muito bem, nada cairia do céu.

O que fazer? Era essa a pergunta que o aturdia a ponto de muitas vezes não o deixar simplesmente sair da cama. E se nada acontecesse? Outro aniversário chegaria, mas nada teria mudado, nada o teria completado, ninguém haveria estendido a mão que o levaria de volta ao tempo das tardes de futebol na rua, das promessas de beijo que havia no rosto das meninas da escola, dos sonhos que se realizariam...

Mas nunca se pode saber o que vai acontecer em nossas vidas - desde que aconteça. Pode ser de um dia se topar numa pedra e urrarmos de dor. Pode ser de numa esquina se cruzar um olhar e tudo passar a fazer sentido. Pode acontecer de no futuro a gente olhar para o passado e sorrir.

O relógio marcava a hora de levantar. Arrumou-se, saiu de casa e colocou-se a caminhar, mas dessa vez sem pensar muito no que seria do seu dia. Um passo veio atrás do outro. A única coisa importante era que faria o que tinha de fazer naquele momento: pegar o ônibus, entregar os documentos que sua mãe havia lhe pedido, depois voltar e encontrar com seus amigos.

Já perto de seu destino, dobrou a esquina do quarteirão e não viu a notável pedra que repousava bem diante de seu nariz. Topou nela tão violentamente que desequilibrou-se e não conseguiu conter um terrível grito de dor, traduzido pelo palavreado: "Puta merda!!!"

Das pessoas que estavam próximas, algumas riram, outras se assustaram com o grito, mas houve também aquelas que vieram lhe estender a mão. E uma delas, cordialmente, lhe disse: "Acontece".

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Os Outros*

Finalmente, o fim do expediente: cinco horas da tarde de mais uma sexta-feira dos seus quarenta anos de idade.

Até agora havia enfrentado dignamente os trabalhos e os dias ao longo das diversas funções que ocupara em sua vida - mas durante todo esse tempo não conseguira eliminar ainda aquele germe insatisfeito que o obrigava a desejar uma ruptura substancial com um modelo de vida que considerava tradicional e banal demais.

Saiu do escritório e entrou no carro, direto para casa.

No caminho, a idéia de abandonar a cidade e morar em qualquer fim de mundo o sufocava. E a sua família, mulher e filhos? Não, eles não eram o problema; o apoiariam por mais incompreensíveis e penosas que fossem suas vontades. Dinheiro para essa mudança radical também havia o suficiente.

Olhou pela janela do carro e avistou um bar fuleiro na beira da estrada; decidiu parar. Sentou-se num canto do balcão, pediu uma cerveja e olhou para os gatos pingados de rua que acompanhavam um jogo pela tv.

"Largar tudo, ser um ninguém; viver de feijão e farinha, no meio do nada, como bichos, longe dos amigos, sem os eventos que não gostava de ir, sem as facilidades da vida moderna", e principalmente: no verdadeiro isolamento. A vida sendo realmente vivida em sua insignificante, mas preciosa, simplicidade; em sua indiferença como pessoa do mundo, da história; em sua quase inexistência para os outros.

Os outros. Com os quais sempre teve a necessidade de mediação e relacionamento regulados, com receio, cuidado - e carinho.

Seria realmente capaz dessa ruptura? Não, pois não teria mais quarenta anos pela frente para realizá-la - enquanto o germe do ideal insatisfeito irá permanecer, paciente e silenciosamente, corroendo seu interior até que com ele seja enterrado, para depois seguir seu caminho pela terra fértil...

Resignando-se, matou sua cerveja e sorrindo perguntou aos homens: "Quanto tá o jogo?"

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sábado, 4 de julho de 2009

A Festa*

Houve uma festa. Embora tivesse sido convidado, como de costume, deixou-se levar pelas circunstâncias ao invés de comparecer voluntariamente.

O clima era aconchegante e devidamente alegre. A música e o murmúrio preenchiam o lugar por onde se confinavam pequenos grupos de pessoas.

Acompanhou-se de uma bebida e quando necessário participava da conversa de seus amigos. Tinha a irrelevante preocupação de estruturar suas frases de maneira que não fossem vazias ou inconvenientemente profundas demais - afinal, era uma festa e não um debate acadêmico. Esse trabalho o cansava facilmente, e logo se perdia num olhar distante, que não tão inconscientemente procurava por qualquer espécie de epifania mundana. Quem sabe um olhar intrigante? Uma atração...

Nada. Multiplicavam-se trivialidades e sorrisos fáticos. Melhor assim. Definitivamente, não há lugar em uma festa para a misantropia e a distimia alheia - talvez, nem fosse mesmo o caso de assumir este auto-diagnóstico para si. Porquê simplesmente não inspirar a leveza leviana e expirar cordialidade?

Porque sim, um homem se torna aquilo que é.

Porque não, o silêncio não precisa doer tanto.

A festa continua. A bebida e a música trouxeram a distração e distante de todos havia um par de vasos de flores. Talvez fossem uma epifania, talvez fossem um refúgio. Eram lindas - e a beleza tem o poder natural de confortar e comover. Lindas e solitárias, como que esperando a companhia e o calor do olhar de alguém.

Depois desse encontro, a festa acabou.

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