sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Olhos Abertos*

Muitas possibilidades permeavam as salas em que trabalhava, o ônibus que o conduzia, as ruas por onde andava e as pessoas com quem mantinha relações. Era normal, portanto, que se dedicasse constantemente a ponderar todas elas, na tentativa de se aproximar da recepcionista de cabelos longos e lábios pintados, da moça que sentava a sua frente todas as manhãs com os ombros e nuca expostos - muito embora tivessem sido raras tais aproximações.

Para os olhos escondidos atrás dos óculos, no entanto, não existia amores platônicos, impossíveis - todas as formas eram capturadas e as texturas, consumidas, voraz e visualmente. Por mais distantes e inacessíveis que fossem durante o dia, nenhuma curva inocente dos caminhos percorridos deixaria de ser contemplada pela fome de seus sentidos.

- "Para que tantas pernas, meu deus, pergunta meu coração. Porém, meus olhos não perguntam nada..."

À noite, já passava da hora em que habitualmente dormia, estava deitado, mas seus pés se agitavam nervosamente, no ritmo dissonante em que sua mente lhe exibia uma confusão de cenas desconexas, lembranças, acontecimentos do dia, temores, expectativas: um indecifrável emaranhado de significados. A chuva branda que caía do lado de fora, vibrando um chiado tão propício a uma boa noite de descanso, contrastava com os movimentos inquietos do seu corpo, rolando de um lado para o outro da cama.

Abria os olhos, como uma pessoa que está se afogando e busca desesperada por ar, mas a escuridão do quarto também funciona como pano de fundo para os devaneios que não o deixam dormir. Seu pensamento continuava acelerado. Experimentou deixar que as imagens fluíssem sem tentar impedir, controlar ou compreender seu encadeamento frenético. Nenhum resultado. Não houve outro meio se não render-se, às imagens que o instigavam à volúpia e à vígilia, e ao tempo, o único capaz de lhe trazer o sono.

Acordou com a estranha sensação de que permanecera a noite inteira com os olhos abertos.

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terça-feira, 18 de agosto de 2009

A Primeira Vez*

Aquela era a terceira ou quarta vez que se encontravam. Costumavam marcar uma cerveja no final do dia, o que de certa forma contribuia para amenizar as inibições iniciais entre dois recém desconhecidos, enquanto lentamente se descobriam e criavam intimidade para conversas menos acanhadas.

Depois de pelo menos quatro garrafas, o diálogo já se encaminhava naturalmente, com maior liberdade e espaço para um humor agradável, consumando a alegre afinidade do casal e permitindo trocas de carinho cada vez mais conscientes.

Contudo, num dado momento em que muitos assuntos haviam se esgotado, ao invés dos sorrisos espontâneos, emergiu de suas bocas desejosas um intervalo de conveniente silêncio. Fixaram seus olhares, com a deliciosa curiosidade de quem busca descobrir no outro um pouco mais dessa pessoa estranha e fascinante, através do encantamento que acontece na presença de alguém que se admira - na ausência de palavras.

Ela notou em sua expressão o que achou ser um pouco de tristeza. Talvez ele já estivesse cansado e quisesse ir para casa. (Teria se cansado dela?) Perguntou: "Tudo bem? De repente você ficou com um olhar tão triste... Aconteceu alguma coisa?" "Não, nada", respondeu ele com um leve sorriso.

Lembrou-se da primeira vez em que lhe haviam feito aquela pergunta. Estava deitado em sua cama, sem fazer nada, apenas olhando para o teto. Não tivera aula aquele dia, por causa de algum feriado, e embora não soubesse nada do que sentia, provavelmente estava triste porque não veria a menina de sua sala, por quem alimentava um amor ainda totalmente inexperiente. Seu pai, quando o viu no quarto, quieto e sozinho, aproximou-se e perguntou: "Tudo bem, filho? Você está triste com alguma coisa?" E ele, do mesmo jeito, havia respondido: "Não, nada..."

A bonita mulher, que tão cordialmente continuava o observando, não poderia desvendar nele esse olhar que trazia a marca do que talvez tenha sido o desabrochar do amor em seu peito, e também de sua primeira tristeza, sem saber que tudo o que aconteceria depois em sua vida afetiva seria uma variação desse olhar.

Enternecido por ela, que o fitava ansiosa e que acabara de reconhecer em seu semblante aquele dia escondido no passado, pegou-lhe as mãos, sugeriu que ficassem mais um pouco e convidou-a para que se encontrassem outras vezes.
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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A Última das Horas*

No meio da multidão está o rosto de uma pessoa, entre centenas de outras pessoas, seguindo pelas calçadas alvoroçadas de pernas, por dezenas de ruas que cortam espaços completamente preenchidos de prédios.

Toca o celular: "Oi, amor. Na rua. Não, não demoro. Beijo."

A música volta a penetrar por seus ouvidos, calando o intenso ruído do mundo lá fora, misturando-se a vagos pensamentos disformes, sobre a mulher, a vida, o trabalho, evocando lembranças interrompidas continuamente por vozes, imagens, e fazendo com que tudo se condense em um anestesiante estado de distração.

Olha o relógio - está atrasado -, enquanto um leve tumulto passa desapercebido do outro lado da rua. É tudo muito rápido. De repente, simplesmente deixa de existir. Pessoas começam a correr, assustadas. Alguns minutos depois, aglomeram-se curiosos, gritos surgem pedindo socorro, um homem foi gravemente ferido, parece estar morto, deve ter sido baleado, atiraram do outro lado da rua, assaltaram uma loja de roupas.

A ambulância demora, as pessoas voltam a caminhar nervosas pelas calçadas, o ruído que por um instante cessou volta a sua intensidade normal, os médicos chegam, examinam o corpo, é tarde demais, não houve chance, morreu na hora, o tiro atravessou um órgão vital, não deve ter sentido dor, talvez nem tenha percebido que morreu, fulminante do jeito que foi, não dá tempo nem de lembrar que um dia esteve vivo.

No restaurante a três quadras dali, uma mulher espera em vão por seu marido.
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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Vaso*

Em sua pequena casa, haviam vasos de flores espalhados pela sala, cozinha, e tinha o privilégio de poder contar com uma humilde varanda, seu espaço predileto, para onde suas pernas o levavam espontaneamente, junto de outras flores e de sua planta preferida: um pé de morango.

Há pouco, havia comprado um vaso para receber mais uma companheira e o posto na varanda, ao lado de seu querido morangueiro. Era preciso conseguir tempo, tempo para morangos, flores e vasos vazios.

Dias depois, passando pela feira no caminho de seu trabalho, reparou numa senhora que naquela manhã ocupava um pequeno espaço entre as barracas, expondo uma única flor sobre um pano branco estendido no chão.

"Bom dia, senhora. Sua flor é muito bonita. Estranho nunca ter visto a senhora vendendo flores por aqui."

"Estou sempre de passagem, meu filho. Vez ou outra, quando nasce uma flor no meu quintal, trago ela para enfeitar a vista das pessoas."

Infelizmente, ele não poderia levar consigo a vistosa flor da senhora. Quem sabe mais tarde, quando estivesse a caminho de casa. Lamentou-se, explicou à mulher e partiu, vendo em seu rosto um terno e inquietante sorriso.

Saiu afoito do trabalho em direção à feira, ansioso por encontrar o pano branco estendido no chão, mas a senhora não estava mais lá - havia levado sua flor embora, ou entregue a um estranho.

Chegando em casa, suas pernas o levaram espontaneamente à varanda, para aproveitar os últimos raios de luz do dia junto de seu morangueiro. Sentou-se no chão, um pouco inquieto, e encostou suas costas e cabeça na parede, olhando para o vaso vazio na sua frente. Fechou os olhos, ternamente, respirou fundo e deixou escapar o ar.

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