sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Um Dia na Vida*

Primeiro, o relógio avisa que é hora de se levantar. Depois, a toalete, a água no rosto e o espelho, o primeiro contato com a imagem de si mesmo: começam a surgir as primeiras impressões, ainda misturadas com imagens de sonho. Lembramos da vida.

No café já se começa a processar as tarefas, pessoas, eventos, pensamentos, lembranças, sentimentos - movimento de consciência espontâneo, versátil, volúvel e volátil, que arrasta, muitas vezes com violência, a canoa da imaginação até distantes e estranhas margens. Surgem também as primeiras pessoas, presenças vultuosas, emitindo sons e significados mecânicos - esboço de alguma humanidade.

Uma vez de pé, e em plena atividade, perde-se de vista, por muito tempo, o fio de consciência que sozinho se aventura no imenso mar das sensações. Vez ou outra, encontra alguma ilha no caminho, procura sinais de vida, deleita-se quando encontra correspondência, mas de novo é levada pelas ondas. Metáforas. Como se os sentimentos fossem partículas de gás brilhante que tendem a se expandir infinitamente mas encontram as paredes do corpo: efluvescência.

Mais um dia na vida terá se passado, mais um oceano de sentimentos terá se perdido, ou se transformado em poeira invisível, inexplicável, enquanto tudo continuará funcionando fria e perfeitamente: nada terá sido, nem compreendido, nem comunicado.

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4 comentários:

  1. Não sei o que comentar. Juro. Me remeteu a Clarice, mas nem Clarice me trouxe tantas sensações tão familiares mesmo tendo sido sentidas pela primeira vez na minha vida, ao ler esse texto. Parabéns, rapaz! =^)))

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  2. Obrigado, gatsenho!

    Pois é, acho que também me lembrou Clarice, não sei se pela intensidade de estímulos, mas depois que escrevi fiquei com aquela frase na cabeça: "Tudo começou com um sim." E os Beatles, sacou? A Day in the Life... mas foi só o título mesmo. Teve também um Górgias no final, teoria do não-ente: "Nada é, e se for é incompreensível, e se compreensível é incomunicável." Referências que ficam submersas na nossa memória e um dia vêm à tona.


    Valeeeew!

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  3. Esse seu texto me levou às margens de assuntos que gosto muito: semiótica, cognição, memória, signos e por aí vai. Apesar de poder não parecer, é uma descrição de como funciona nossa mente.
    Foi um dos textos mais foda que li, entre os vários que já li seus.
    Parabenzasso.

    Abs

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  4. Gratíssimo, Fred. E o curioso é que eu não fiquei muito satisfeito quanto à forma desse texto, achei que ele tinha ficado muito sem unidade, mas no final parece que deu certo. E tudo é tão desconexo mesmo - nossa mente não funciona como uma linha reta. Sem dúvida, esse texto é uma espécie de tentativa de, senão entender, pelo menos acompanhar, vislumbrar, os movimentos e cursos da nossa (da minha?) subjetividade ao longo do dia. A gente tenta.

    Abraço!

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