terça-feira, 7 de abril de 2009

Limpeza Diária*

Sou uma dona de casa frustrada. Mas não dessas que alimentam a cabeça com a filosofia dos programas da tarde. Meu caso é muito mais complexo: sou dona de casa e sou frustrado, o que são coisas bem diferentes - mas que casam bem.
As mocinhas modernas que lêem este texto não me comprenderão; são independentes demais e sabem que o que vale à pena mesmo é estudar, progredir na vida e ser feliz; não poderiam compreender a profundidade íntima dos labores domésticos; se revoltariam por terem de fazer uma faxina em casa e por isso não têm idéia de quão longe vai nossa imaginação com uma bela vassourada pelos cômodos; não supõem a confidência e os benefícios terapêuticos de lavar a louça e deixar a pia vazia e limpa, sem contar a satisfação final de ver tudo em ordem, bem arrumado.
A frustração não faz parte desse dever. O lar é uma vocação que desde cedo se conhece e só tarde se desenvolve. Mas é muito fácil acabar conciliando as duas coisas, hospedar em casa a vontade de algo que está além e quando nos damos conta já estamos na cozinha tomando chá e assistindo a sérias banalidades na companhia indesejada de uma necessidade latente e não realizada que aos poucos compromete o prazer de se dedicar tranquilamente aos afazeres cotidianos.
Dá trabalho cuidar de uma casa, cuidar de si, manter as coisas organizadas, cada uma em seu lugar; custa enfrentar a bagunça, mas tem de ser feito. Todos passam o dia fora e ninguém irá fazer no seu lugar. 
Se deixar a sujeira toma conta, vira um desamor constante, e só você foi o responsável.


5 comentários:

  1. Cuidar do lar é cuidar do amor que se tem por si mesmo.

    Abraço!

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  2. Bité,

    Amei este texto. Muito bom mesmo. Talvez eu tenha gostado tanto porque, visto que estou desempregado, estou atuando como dona (o) de casa. Mas, na verdade, eu gostei muito porque não é de hoje que eu tenho este ideal de cuidar somente dos afazeres domésticos. As frases que você utilizou em seu texto, citando a profundidade dos afazeres domésticos me tocaram muito. Isso me lembra algo Zen-Budista. Como você sabe, eles dão muito valor às atividades cotidianas, como a limpeza do templo, o comer, a cerimônia do chá. Afirmam que a Iluminação está em tudo, qualquer coisa ou ação possui a potencialidade de despertar a consciência de um indivíduo. Basta nos relacionarmos adequadamente com as situações. Lembra-me também a Consciência de Krishna; quando Krishna incentiva Arjuna a cumprir com o seu dever prescrito de lutar e ainda assim cultivar a religiosidade, a devoção, enfim, buscar a Iluminação. Krishna canta a Bhagavad-Gita em meio a um campo de batalha, querendo evidenciar que, se mesmo ali é possível vivenciar a experiência de plenitude, quem dirá em todas as outras situações bem menos turbulentas de nossas vidas. Tudo passa, como você bem coloca ao final do texto, pela perspectiva do trabalho. Realmente dá trabalho cuidar de uma casa, bem como de nós mesmos. Como você também disse, ninguém pode fazer o trabalho por nós. É exatamente neste ponto de minha reflexão que eu discordo de ti quando você diz que o trabalho doméstico e a frustração casam bem. Na verdade, creio que os trabalhos domésticos, quando bem analisados, nos fazem perceber o quão a frustração pode estar deslocada dentro de nós mesmos. É curioso perceber como você, tão percpetivo em relação a profundidade dos afazeres domésticos, não percebe que a presença da frustração dentro de si é um símbolo do fato de que talvze você não esteja cuidando tão bem de si mesmo. Que a perspectiva dos trabalhos domésticos desperte em você a inspiração para continuar escrevendo tão belos textos, mas, mais importante que isso, expulsar de uma vez por todas este sentimento de frustração de sua vida, que, segundo meu entendimento, você insiste em carregar, e não de hoje, por pura inércia ou sentimento de que o mesmo grante algum ar de sofisticação, mas, na verdade, ele está ali, como um móvel empoeirado, não mais utilizado, que poderia ser descartado. CARPE DIEM!

    Saudades,

    Adriano.

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  3. Ainda nao tuve a oportunidade de ler seus escritos, eu debo fazer com paciencia, son mais elaborados que o que falamos em Pipa.
    Saudades meu amigo!

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  4. Pô, bacana, valeu mesmo, fico feliz que meu texto seja capaz de levar a alguma comoção.
    Quanto à discordância, de acordo com o que você disse, não sei bem se ela existe - ou é necessária. Veja: o texto também afirma justamente o que você coloca, que a frustração está, de fato, dentro de si e surge quando não cuidamos bem nós mesmos("cuidar da casa, cuidar de si"), o que dá margem ao ato equivocado de misturar nossa própria frustração aos labores diários. Aliás, esse é todo o trabalho do texto; é assim que ele começa e termina, dizendo como é nocivo permitir que eles se misturem, que se casem bem, embora exista essa tendência interna (deixar que tudo se misture numa única e enorme bad - a sujeira tomando conta) caso não tomemos cuidado para organizarmos bem as coisas (aí então não percebemos, e quando nos damos conta já estamos na presença indesejada dessa frustração, vontade não-realizada), pôr cada coisa em seu lugar, a frustração em um canto, e o trabalho em outro, como coisas diferentes ("A frustração não faz parte desse dever") a serem cuidadas.
    Portanto, peço para que haja uma releitura e, caso persista essa discordância, seja apontado textualmente em que momento o texto induz a essa interpretação. O enunciado "casam bem" não está solto no texto e assim não pode ser tomado como uma uma conclusão, significado definitivo do texto, quando, pelo contrário, é o nó, a relação, que irá ser questionada.
    Quanto à minha frustração particular e intrínseca, esta deve ser, se possível, relevada, não como uma característica elevada intelectual e romanticamente, mas como algo importante que não pode ser dissociado e carece de eleaboração, sob muitas formas, de melancolia, raiva, frustração ou as tantas outras formas que o desejo e o sofrimento podem assumir - individualmente. Eu mesmo costumo reconhecer esse móvel empoeirado na mesma escrita o chamando, entre outras coisas, de um "tom lamurioso" insistente, pesado e incômodo. Tenho certeza que essa auto-crítica, (fundamental) está presente em outros textos e ironias, como em "Pernilongo", de tempos atrás.

    É incrível como um texto e uma discussão podem levar a lugares tão interessantes. Agradeço também por essa oportunidade.


    Abraço, manu.

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  5. Nossa, A-D-O-R-E-I esse texto... o nosso lar, reflete e mto o estado de nosso interior!
    Saudades, amigão!

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