quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Menos Energia*

De uma vez por todas, vamos tentar esclarecer essa coisa de "energia". Quem já não ouviu por aí algo do tipo, "Esse lugar tem uma energia estranha", "Fulano tem uma energia muito boa", "Senti uma energia negativa"? Posso estar enganado, mas isso é um tipo de fé oriunda das cada vez mais presentes explicações esotéricas do mundo.

A religiosidade moderna incorporou no seu modo de ver as coisas o novo misticismo da chamada Nova Era - que é, basicamente, o "resultado espiritual" da miscelânea cultural do século XX -, de modo que hoje em dia somos todos uma espécie de receptor místico, transcendental e espiritual, que circula por aí trocando e recebendo energias, com informações tão ricas que é possível até saber o que a pessoa comeu no almoço (ou será nosso olfato trabalhando sem que percebamos?).

Tá lá, pode pegar qualquer livro de sociologia que passe pelo tema para encontrar o desenvolvimento energético da nossa alma. Mas, além da sociologia, outras disciplinas podem dissolver um pouco mais essas influências (termo esse, inclusive, que nasceu em nosso vocabulário junto com estas visões de mundo) místicas. Peguemos a semiótica (ciência que estuda a construção dos significados), ou qualquer outro tratado que lide com a percepção e cognição humana, para que a gente entenda melhor como funciona o nosso jeito de perceber as coisas e pessoas.

Mas ninguém vai ter saco de ler um livro inteiro só pra isso, então é muito mais fácil chamar de energia o que acontece e a gente não sabe explicar; por isso essa coisa de energia é mais o caso de uma preguiça do nosso entendimento, que aliada a mania de superstição, vira uma realidade. Chega a ser até uma irresponsabilidade, sair por aí espalhando impunemente o que nem se teve o trabalho de tentar entender, pois, em todo o caso, vale a regra, "afirmar é preciso, saber não é".

As pessoas têm um negócio chamado intuição. Nossos sentidos estão aí, alertas a qualquer movimento, a todos os símbolos, mesmo quando achamos não estar prestando atenção, capturando uma infinidade de estímulos (imagine-se naquelas avenidas de Tóquio completamente dominadas por anúncios luminosos), percebendo uma série de coisas, sem que a gente normalmente se dê conta; em outras palavras, nossos sentidos, visão, olfato etc., estão, involuntariamente, trabalhando o tempo todo. Mas a maioria desses estímulos não chegam ao nosso grandioso entendimento, ou seja, não tomamos consciência de tudo o que acontece, caso contrário sofreríamos uma sobrecarga, um colapso mental (a menos que passemos a usar mais o potencial do nosso cérebro, talvez), e sairíamos correndo surtados pelas ruas - um caso parecido com o fenômeno da information overload, o excesso de informação que nos deixa num estado meio catatônico, sem saber direito o que fazer com tanta informação.

É aí que entra nossa intuição, pois ela é o primeiro estágio do nosso entendimento: o que não se torna compreensível à nossa mente consciente permanece como informação inconsciente, sob a forma de intuição.

O esquema é mais ou menos o seguinte: nossos sentidos capturam os estímulos, que podem ou não virar um conhecimento, algo que a gente possa falar: "Ei, isso existe e é assim". Resumindo, a intuição é a informação que não virou entendimento, permanecendo apenas como estímulo sensorial.

Mas o que isso tudo tem mesmo a ver com a energia mística? Vamos dramatizar uma situação: beltrano chega numa praia, seus sentidos capturam o azul turquesa do mar, a brisa refrescante que sopra em seus cabelos, a luz do sol que traz calor ao seu corpo, e diz: "Esse lugar tem uma energia tão boa". É óbvio! O sujeito esteve sendo intensamente estimulado o tempo todo, mas não ia estragar todo o clima paradisíaco elencando e descrevendo suas percepções, que não foram conscientes e permaneceram apenas como sensações gostosas. É a mesma coisa que encontrar um desafeto na balada, de cara fechada, frases nervosas e provocativas, braços cruzados, ar de desprezo e soltar: " Ai, que energia negativa dessa menina".

Chamamos de energia os símbolos, significados, que, por qualquer motivo, não podemos explicar. Estamos interpretando coisas o tempo todo, só que geralmente não percebemos isso.

O ser humano se define por sua capacide de atribuir significado às coisas e constituir uma linguagem a partir disso. A música e o insenso "energizam" os lugares porque são estímulos agradáveis à nossa percepção. O que existe, então, não é a energia, mas sim o ato, o estímulo e a percepção. Pensamentos positivos atraem coisas positivas na medida em que determinam nossos atos e esses passam a ter uma significação positiva, o que proporciona maiores chances da percepção destes terem uma recepção, ou interpretação, igualmente positivas de quem as recebe. Inferimos conteúdos que não foram ditos. Interpretamos o que comemos, o que vestimos - significamos até quando não queremos significar nada.

Pode-se, inclusive, dizer que esse é um dos traços do que atualmente se chama de economia de trocas simbólicas, graças ao valor que o significado, a representação e o símbolo, por si só possuem. Um exemplo disso é que muito dificilmente alguém irá carregar consigo todo o dinheiro que possui; basta que sua conta no banco mostre um valor numérico na tela e que este seja simbolicamente transferido para outro lugar, não havendo necessidade de se transportar materialmente centavo por centavo: o que vale é o valor simbólico.

A energia é um recurso cada vez mais escasso em nosso planeta. Não devemos, portanto, consumi-la inconsequentemente para satisfazer nossas necessidades místicas. Então, antes de dizer que sentiu uma "energia estranha", que tal parar um pouco e prestar mais atenção nos estímulos que estão acontecendo ao seu redor; para isso, é preciso deixar a preguiça de lado e se esforçar para compreender os símbolos e significados que se escondem diante do nosso nariz: "as coisas conversam coisas surpreendentes..."

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3 comentários:

  1. Fiquei boquiaberto depois de terminar o texto... De fato, já o estava bem antes da metade. Achei legal ter citado o "information overload", que pra mim é a conseqüencia de coisas inconsequentes desse passado recente de tecnologia avançada, e a causa de todos os bens e males presentes e futuros. E com isso, exatamente cada vez mais catatônicos ficamos.
    Fora essa parte, pela primeira vez um texto conseguiu me mostrar de uma outra forma o que eu sempre senti no palco, em relação à ser submetido a uma carga quase que explosiva de estímulos sensoriais, e que ironicamente eu SEMPRE chamei de energia... hehehehe

    E, pra concluir, SIM: o plano de expressão E o de conteúdo estão impressos nessa música, em "Me" e em "Sol" também, e na verdade o verso "E se dói só resta a mim que faça sol do lado de lá" tem uma escala inteira. =^) Sempre passou pela minha cabeça a idéia, também, e eu consegui finalmente concretizá-la!

    Abraços, gatsenho!

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  2. Meu caro amigo,
    Até tive [muita, admito] vontade de dizer qualquer coisa aqui, pré supondo que tivesses com esse texto abandonado minha modesta saleta com os copos e a garrafa e nosso cigarro a meio. Então me resolvi a escrever essa bobagenzinha, pra dizer que espero que você tenha apenas ido à casa de banho...

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  3. Olá.
    Forte o texto. Tem alertas muito válidos. Aliás eu acredito na possibilidade de sentir energias e campos magnéticos, mas até onde eu sei isso exige bastante treino, dedicação e austeridades para conseguir algum resultado. Não é oba-oba como os misticóides de plantão sugerem.
    A semiótica é foda nesse sentido. Adoro semiótica.
    Grande Abs

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