terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Enfezado*

Levantou com o pé esquerdo. Era uma terça-feira e ontem havia sido preciso fazer hora extra (não remunerada) no trabalho, em mais uma daquelas reuniões cheias de clichês administrativos e muitas cobranças (detalhe: em plena segunda-feira). Sem contar que o salário ainda não tinha caido e as contas já estavam todas atrasadas.

Não bastasse tudo isso, o despertador estava meio doido, acordou em cima da hora e teve que pegar um trânsito absurdo para chegar no trabalho e encontrar o chefe com a cara daquele tamanho: "É foda, viu!" Mal deu tempo de lavar o rosto e realizar as necessidades matinais - e o vaso ainda fez o favor de entupir. Deixou pra ver isso depois, quando chegasse.

No trabalho, aquele mesmo aborrecimento de sempre, nada ainda do salário cair, a impressora dando problema e a internet ficou pelo menos uma hora sem dar sinal de vida; atrasou o documento que precisava mandar e por isso a firma provavelmente ia ter que pagar uma multa. Mais reclamações.

Final de tarde, hora de voltar pra casa, justo quando costuma desabar uma tempestade tropical e terminar de comprometer o trânsito que já é monstruoso nesse horário.

Chegou três horas depois. Não tinha nada para comer; tinha esquecido de comprar alguma coisa. Um banho: um banho era a salvação. Mas antes precisava "aliviar a consciência" no vaso; quando abre a tampa tem a triste e furiosa lembrança que aquela porcaria está com problema. Tenta a descarga, o balde, o desentupidor: nada. Só piora ainda mais o cenário.

Depois de  inúmeras tentativas, que acabaram de esgotar sua paciência, com repugnância, somada à indignação, à revolta e a todas as coisas que vinha passando, começou a remover o conteúdo com as próprias mãos, enquanto lágrimas de ódio brotavam de suas olheiras, os olhos vidrados, os dentes cerrados e os movimentos cada vez mais convulsos, até que não suportou mais a pressão interna de seus nervos e explodiu em golpes contra o vaso, quebrando a louça, seus dedos, suas mãos, fazendo cortes profundos no braço, até cair e bater a cabeça em uma ponta providencial da privada espatifada, que viria pôr fim a todo aquele sofrimento, àquela vida de merda.

Na medida em que seu sangue e sua consciência iam se esvaindo em meio à imundice do banheiro, sua cólera e seus problemas também iam sendo esquecidos. Tudo o que sentia era uma sonolência boa e tranquíla que aumentava conforme era abraçado pelo frio dos azuleijos - pelo frio da morte, que se aproximava calmamente.

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