terça-feira, 17 de março de 2009

Sucata*

Da varanda de onde moro, tenho vista privilegiada para um ferro-velho. Passei algum tempo revirando minhas idéias à procura de um mote-inspiração, mas a única coisa que parecia servir a este fim me levava necessariamente àquela paisagem de sucatas, assim como nos momentos de lazer e/ou de um cigarro, era levado, involuntariamente, a acompanhar o movimento do dia: muitos caminhões, carroças e pessoas trabalhando e comercializando tudo de metal indesejado que se possa imaginar; caçambas transbordando de latas, fardos de papel, garrafas, solas de sapatos e sandálias e chinelos, etc. Só o que não sabia era como transformar tudo isso em algo minimamente relevante, que expressasse qualquer conteúdo meu, por mais bobo que fosse, mas que desse a mim mesmo uma espécie de ombro amigo, me ajudando a sair de um longo e incômodo silêncio, daqueles que não permitem reflexão e parecem mais algum tipo de estagnação mental.

Pensei em discorrer sobre o caos organizado do lugar, ou sobre nossa miséria e o lixo que produzimos e que também é o sustento de outros; ou ainda sobre o humilde e pesado trabalho no meio de tamanho entulho, mas que é tão digno como os demais. Enfim, nenhuma dessas abordagens me agradou e tenho náuseas só de me imaginar fazendo um daqueles discursos rançosos, como os que fazem a televisão, que exploram e nos convencem do heroísmo e felicidade que há na simplicidade da pobreza. Essa falsa humildade vende bem como produto em programas de domingo, mostra ao pobre que poderia ser pior e ao rico que deve estar contente por não estar naquelas condições; e, no final, todos se sentem satisfeitos com sua própria piedade e aliviados – não sem alguma culpa - por acontecer ao outro.

Mas a honesta humildade, que talvez nem mesmo tenham aqueles que vivem de recolher o lixo dos outros – e que, se pudessem, possivelmente seriam mais um a se comover com o espetáculo da tevê -, não a possui quem simplesmente se submete ao trabalho bruto, nem pratica esmola ou dá caridade; nem mesmo quem a considera um valor e a deseja, buscando em meio à bagunça de um ferro-velho – do alto de um apartamento... Essa profunda humildade, que se parece com um dom, ou uma revelação, daquelas que só uma grande doença pode proporcionar a um paciente terminal, que de repente descobre a fragilidade da vida e por isso pode amar, puramente, sem se preocupar com as banalidades e imbecilidades que, por distração ou fraqueza, considerava importantes ou inevitáveis e o consumiam diariamente, sem se dar conta de que o que precisava realmente era o carinho das pessoas, de tempo para si, dos amigos, da família, da praia... Dessas coisas que todo mundo faz idéia e que dizem alguns livros, filmes e músicas, mas não passam de historinhas bonitinhas que, além de bobas, são distantes e impossíveis na realidade.  Da mesma forma que é impossível transformar sucata em uma palavra amiga, ou surtos de alucinações hipocondríacas que precedem o sono em uma doença fatal que revele e ensine a verdadeira humildade.

Um comentário:

  1. Texto genial, que ilustra muito bem o que eu sinto sobre a nossa necessidade de reciclar certas idéias e conceitos e a dificuldade em o fazer, mesmo quando tudo já se mostra mais do que ultrapassado ou mesmo um grande lixão.

    Mas não se preocupe amigo: cair em clichês (mas nunca nos dos programas de domingo) às vezes é saber que, ainda que não haja uma verdade absoluta, certas palavras e sentimentos podem nunca ser colocados de uma forma melhor.

    Abraços!

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