quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Temporal*

Ou o Relógio Sem Ponteiros

Tarde de domingo, depois do almoço. Há quatro dias não parava de chover. Abre a cortina, vê o temporal castigando a rua: a chuva caindo de lado, o vento quase levando os galhos da árvore. Tudo muito cinza. Tão escuro, logo cedo, que a luz dos postes já estava acesa.

Deita no sofá. Nada na tv, nem videogame, nem amigos fora de casa com um tempo ruim desses. Sua maior sorte seria dormir. Entrega-se ao tédio, ao braço do sofá e ao cobertor. Desejava que as horas passassem logo e fosse logo amanhã. Inquieto, isolado naquela sala perdida em um temporal de domingo, vai atrás de umas fotos que guardava na gaveta. Além do álbum com balões coloridos na capa, achou um relógio antigo. Numa tarde de chuva em casa, sozinho, parece que o ar se torna um véu espesso impregnado de horas mortas. Reparou que o relógio não tinha ponteiros. Não lembrava o por que daquilo e foi se deitar novamente.

Domingo à tarde, sol. O dia está lindo lá fora, dá vontade de abrir a janela e deixar a luz entrar. Ou quem sabe sair, passear, ir à procura de lugares verdes, com água por perto; caminhar nas areias da praia que não parece ter fim (mas há um morro lá longe). O céu deve estar laranja na praia, manchado de nuvens roxas, com pinceladas de rosa. O mar vai seguindo ao lado, calmo, azul escuro, com o barulho de ondas quebrando no raso. É bom andar com as pernas, pensar na vida e sentir que todas as coisas só podem ser do jeito que são, sem se importar com os passos que ficam para trás na areia. Parece até que a vida é só o presente, porque a marca dos pés a gente acaba encontrando na volta – mais fracas, é verdade. Do outro lado da janela, o tempo muda.

Aquelas fotos lembram um domingo na praia. Era inverno e garoava fino. O tempo estava tão nublado que a luz dos postes já estava acesa (alaranjada) e o mar grande, bravo, inpenetrável. Sombras de pessoas apareciam distantes, possíveis pescadores.  Não havia outro abrigo, se não um telhado de palha para se esconder da chuva e algum tempo a mais antes de voltar para casa. Não se importava com a paisagem fria, desejava que as horas não passassem, mas que pudesse estar em casa, ou caminhando na praia num dia de sol. Olhando aquelas fotos, sente que o tempo é uma tarde de domingo chuvosa, e que a felicidade é cinza da cor do céu quando ele se junta com o mar em um dia nublado.

Abre a cortina e vê o tempo estiar numa tarde de domingo. Mais uma tarde de domingo, outra fotografia perdida na gaveta e mais horas que não serão marcadas no seu relógio antigo.

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6 comentários:

  1. Gostei do texto, primo. Muito legal.
    Eu gosto de ver as estações passando e vc descreveu cenas tão interessantes e detalhadas que me vi em todos os domingos.

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  2. Gosto muito dos títulos que vc escolhe, são sempre criativos e geralmente polissemicos(agora me lembro de um outro: enfezado), como esse Temporal*, que se refere a um temporal lá fora e ao tempo que não é marcado em um relógio.
    Também gosto das descrições, tão interessantes e detalhadas(como comentou sua prima), que tb me fazem viver o momento, como um domingo chuvoso, que parece fazer o tempo parar.
    Outra coisa interessante é a mudança de estados: um domingo de chuva, um domingo de sol. Gosto disso tb, como tb gostei da filosofada sobre o tempo e as pegadas na areia da praia.
    Gostei de tudo ;)

    p.s não deu pra revisar o que escrevi pq vc m chamou pra almoçar, então, perdoe qualquer falta de coesão e coerência.

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  3. Fico impressionado com sua capacidade (não tive tempo de escolher palavra melhor) para descrições. E para dar-lhes, digamos, beleza.

    Atingem, realmente, a imaginação.

    "É bom andar com as pernas, pensar na vida e sentir que todas as coisas só podem ser do jeito que são, sem se importar com os passos que ficam para trás na areia"

    Muito boa essa passagem. Principalmente no uso do verbo "sentir". É fácil saber minhas predileções.

    "Abre a cortina e vê o tempo estiar numa tarde de domingo"

    Extremamente interessante essa outra passagem. Tão ambígua! Fascinante!

    Rodrigo Lima

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  4. Sei que não é de todo certo isso que faço, a saber, "quebrar" seus textos.

    Falta-me visão do todo. Ou sobra-me preguiça.

    Mas, se é realmente possível, tenho treinado para mudar-me, nesse sentido.

    Portanto, minhas desculpas.

    Rodrigo Lima

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  5. Obrigado, prima. Realmente, são estações da vida passando. (E, devo dizer, qualquer semelhança com o clima itanhaense não é mera coincidência, rs.)

    Fabiana: polissemia e mudanças de estado, exatamente. Só depois do seu comentário fui atentar de fato para os desdobramentos do título, o qual, embora intencional, parece desenvolver-se por si só. Filosofadas são inevitáveis. E a coerência é uma luta!

    Lima Bobi: se vocês insistem que sou capaz de boas descrições, não vou discutir, e agradeço; mas saiba que para mim, este é um dos atributos mais difíceis de se conseguir; geralmente, acabo me perdendo em impressões sobre o vago, rs. E não se esqueça que para analisar, é preciso quebrar o texto, e depois reuni-lo naquilo que mais lhe sensibilizou. Seus comentários são sempre bem vindos. (A preguiça também.)

    Agradecido.
    Não deixem de comentar!

    Abraço!
    ;-)

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  6. Há muito não passava por aqui! E há muito não leio um texto de tamanhã delicia sonora e tão carregado de significado! Um forte abraço, irmão!

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