sábado, 30 de abril de 2011

Cigarro*





É algo por volta da meia-noite. Ao longe, na parte alta de uma rua escura, a sombra de um homem vem se aproximando. São passos apressados e desordenados, que de repente descambam abruptamente para um dos lados e, nervosamente, voltam ao centro. Conforme chega perto e é possível ver o seu rosto, consigo reconhecer algumas lágrimas e uma expressão bastante desolada. Passou por mim resmungando surdamente alguma coisa e fumando um cigarro. Pude ver que tinha dedos finos e um cabelo meio grande e despenteado; não dava para ver a cor dos olhos, apenas o brilho vermelho do cigarro aceso. Eu tinha ido comprar um cigarro, estava com calor e sem sono, meio agoniado. Esse homem me fez pensar no quanto a vida é frágil e o desespero, eminente. Vejo este homem saindo de casa e batendo a porta com força. Tinha brigado com a mulher, saiu só de shorts, camiseta e chinelo. Mas isso adivinhei quando ele passou por mim. Eu havia ido apenas comprar um cigarro, e só agora percebo que também não me lembrava onde estava, tinha saído de casa sem saber onde poderia ter cigarro para vender àquela hora; agora, não sei se ia voltar ou continuar andando até encontrar alguma coisa aberta. Apenas acordei na cama no dia seguinte. Tomei um café e fumei um cigarro, pensando na imagem desse homem.

5 comentários:

  1. escreves bem... adoro pessoas que sabem escrever bem!

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  2. Extremamente frágil, se formos pensar! E, se pensarmos ainda mais, dependendo do caminho que escolhermos para pensar, extremamente desesperante!

    Temos opções a escolher. Pensar ou não pensar! Fumar ou não fumar! Tomar ou não tomar café! Brigar ou não brigar!

    Será que escolhemos, mesmo?! Será esse nosso desespero, nossa fragilidade?!

    Rodrigo Lima

    Ps.: Tenho que compartilhar algo. Tenho pedrinhas dentro de mim...

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  3. Agradeço os comentários... e aproveito para fazer o meu: o texto, obviamente, gira em torno da imagem do cigarro, na qual a expressão "fui ali comprar cigarro" jaz como fundo (o mote); por isso "o homem saindo de casa à noite". Outro título que havia imaginado foi "Policronia", pela sintaxe do texto que remete a tempos diferentes, intercalados entre si. A intenção era com isso fundir a imagem dos dois homens, como em um jogo de espelho, a pessoa que conta e o que caminha desesperada, de maneira que no final não ficasse claro quem era quem, se aquilo havia sido um sonho ou realidade.

    Também acho que tudo são escolhas. Quis apenas expor esse pequeno quadro (grito) sobre o desespero que espreita nossa frágil e cotidiana vida.

    (Que essas pedras seja metafóricas, Bobi.)


    Abraço!

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  4. Realmente, a sua intenção de não deixar claro se o relato do homem seria um sonho ou realidade é "dito", entre outras, em "Apenas acordei na cama no dia seguinte".
    E o que quis expor, "esse pequeno quadro(grito) sobre o desespero que espreita nossa frágil e cotidiana vida", o fez de forma evidente. Foi o que mais me afetou.

    Fiz uma releitura, tendo em conta o "jogo de espelho". Vi(ou inventei?), entre alguns "quês", o que pode nos "mostrar" isso:

    - "A sombra de um homem vem se aproximando"; a sombra, que poderia ser a nossa.
    - "reconhecer algumas lágrimas"; atentando à palavra reconhecer.
    - "também não me lembrava onde estava".
    - e, claro, o cigarro.

    Sou concordante contigo em relação ao título e agradeço seu comentário, sempre ajuda. Não o acho necessário, claro. Melhor "deixar rolar", como diria o Siscão. Não sei se concorda comigo em relação a uma coisa: mostrar aos outros nossos textos é, digamos, uma necessidade; e ter expectativas em relação às suas reações é um mal. Pelo menos, é o que acontece comigo. E algo que eu tenho, na verdade quero, mudar.

    Faltou um "mas" em "Será que escolhemos, mesmo?!", pois não sei se escolhemos ou não.

    Por fim, as pedras não são, muito infelizmente, metafóricas.

    Rodrigo Lima

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  5. Pôxa, que comentário substancioso, coisa boa de se receber.

    Realmente, acho que não criar expectativas em relação à recepção é algo extremamente recomendável - o homem é uma ilha, o inferno são os outros, enfim. Mas me ocorre que para uma boa leitura é preciso trabalho, para ler, entender e reagir, da maneira mais profunda e pessoal possível. É o que se chama de "comover", quando na literatura o efeito do texto deve provocar, levar a uma ação. Mas...

    Teorias à parte, agradeço muito o diálogo.


    Abraço!

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