quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Linha do Trem*

Retrato desta paisagem nunca houve: os vagões estacionados na estação abandonada, exceto por um ou dois bêbados tomando suas doses, e o convento de pedras construído por escravos a assistir tudo do alto do pequeno morro. 

Os vagões tinham aquelas escadinhas, que levavam ao seu oco interior, repleto de emoções e muita ferrugem. Depois, era preciso pular para descer - um grande salto para a infância. O céu: o céu era quase sempre azul, quase sempre o céu da tarde. E o mato crescia na beirada de tudo, dos trilhos, das rodas de ferro, entre as tábuas, tábuas velhas e apodrecidas. Não era um trem de gente, esse passava muito raramente, numa infância ainda mais remota. Era trem de grãos, ou de enxofre, seja lá o que isso fosse.

                                                        * * *

O objetivo era simples: permanecer o maior tempo possível sem cair da linha. Fui campeão algumas vezes, embora geralmente houvesse trapaça do amigo. Ou então fazer o percurso pisando só nas tábuas. Ao lado dos trilhos, havia um morro ainda de terra, com terreno esburacado e cheio de pedras, que também poderia servir de desafio complementar, caso fosse necessário; mas o legal mesmo era transpô-lo de bicicleta. Do outro lado, barracos e casebres emergiam de dentro do mangue, onde se podia caçar caranguejos com lama atolada até os joelhos. Mais adiante, havia a ponte de ferro onde o trem passava antigamente e que naquele tempo servia apenas como ótimo lugar para pescar.

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Os vagões de repente desapareciam. Era menos divertido passar e não encontrá-los. Somente os bêbados lá permaneciam, de pé no balcão do bar que era um vão na parede da estação, suja, destelhada, carcomida pela ação do tempo e dos vândalos - ou pelo vandalismo do tempo. O único desafio que restava era pular da plataforma; usar a escadinha que levava ao chão, jamais.

Foram poucas as vezes que pude atravessar o vagão. Durante alguns anos pude vê-los aparecendo e desaparecendo, até que sem me dar conta os vagões desapareceram de vez, restando apenas os escombros de tábuas, trilhos e o verde do mato implacável.

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4 comentários:

  1. Adorei a frase: "Depois, era preciso pular para descer - um grande salto para a infância".
    Tenho até uma cena em minha mente, de alguém voltando para casa depois de tantos anos e dando esse salto para a infância, através das lembranças, após passar por esses restos de trilhos.
    Suas descrições fazem isso com a minha mente.

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  2. Minha lembrança é da primeira vez que fui ao centro da cidade, sozinho, escondido da minha mãe. Fui pela linha do trem.
    No mesmo dia, comi bolo de cenoura com cobertura de chocolate pela primeira vez.
    Participei de uma guerra de barro.

    Minha outra lembrança é de ir, já adulto, ao centro da cidade, de noite, bebendo pinga direto do gargalo com um grande amigo.

    Tentei passar por lá, outro dia desses, não deu. Uma pena.

    Belas lembranças...

    Rodrigo Lima

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  3. Ueba.
    Suas descrições são comoventes por serem, aparentemente, despretensiosas.
    Ita guarda muitas lembranças interessantes para mim. A lihha do trem é um lugar que me remete às intermináveis caminhadas pela cidade. Aquele trecho próximo à ponte é bem bonito.

    Abraço.

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  4. SIM, MUITAS LEMBRANÇAS,NOS REMETEM LINHA DO TREM
    TEMPOS DE CRIANÇAS,PATINS,PAIS COM BICICLETA, PASSEIO, LINDA TARDE DE SOL.
    QUANDO DE REPENTE:COMO SE, DO NADA VEM UM TREM, OU CARGUEIRO,OU, SEI LÁ...UM MINUTO,UM SEGUNDO,
    UM SUSTO, DUAS CRIANÇAS,EM CIMA DA LINHA,ATRAPALHADAS, COM OS "PATINS"!OS PAIS??...
    ESTAVAM PARALIZADOS!ENFIM, FOI SÓ UM SUSTO,AS CRIANÇAS SAIRAM DA LINHA ,EM TEMPO!!!

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