quinta-feira, 2 de maio de 2013

Crendice*

(Repost 11.12.07)

Eu me lembro de ser pequeno e ouvir da conversa dos adultos que as dores de quem tinha pedra nos rins eram as piores dores do mundo, as únicas comparadas às dores do parto, e que não havia jeito nenhum de fazer com que as terríveis dores parassem. Até homens choravam.

Lembro-me de ter ficado com muito medo, e de ter desejado profundamente - na época, quem sabe, ter inclusive pedido a deus - nunca sentir essas dores. Batata: cresci, e tive pedra nos rins. Confirmei que as dores eram mesmo insuportáveis, e que infelizmente não havia exagero no que os adultos disseram.

Mais tarde, vim a descobrir que as pedras nos rins eram tecnicamente chamadas de "cálculo renal". Achei bonita e elegante a designação técnica, principalmente por ter sido capaz de reconhecer, com meus parcos conhecimentos em latim, que cálculo, aquele mesmo das operações aritméticas, queria dizer pedra, e supus então que os matemáticos de antigamente, não dispondo de calculadoras, faziam contas no chão, ou com as mãos, usando pedrinhas.

Recentemente, em uma conversa com amigos, brinquei e disse que eu só fui ter os benditos cálculos renais porque quando criança eu ouvira desavisado suas assustadoras histórias, e tive tanto medo que acabei desenvolvendo a doença. Assim como nos advertem algumas das famosas crendices populares, do tipo: "Não pode deixar a criança com vontade, senão fica com lombriga". Tive medo, acreditei e me nasceram pedras nos rins. Talvez a psicanálise chame isso de psicossomatização. Nos meus tempos de criança, era só verdade.

Enfim, quando contei a história para meus amigos, eles, com toda a razão, zombaram de mim e da minha hipótese absurda, no que eu retruquei, participando da graça: "Vocês já sentiram alguma dor no pâncreas? Já ouviram alguém se queixar de dores no pâncreas? É óbvio que não, porque ninguém lembra que o pâncreas existe!" Rimos e concordamos com a teoria. Na verdade, concordamos tanto que, um dia desses, um dos amigos se encontrava em leve desalento e desabafou dizendo: "É só a gente não acreditar e tomar cuidado para não lembrar que existe coração, aí a gente não sofre".

Na dúvida, é melhor não acreditar.

Um comentário:

  1. Eu gosto demais desse texto. Apesar do tom de tristeza, existe uma leveza nele. Era um dos meus preferidos do Confraternização *:

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