sexta-feira, 22 de maio de 2009

2011*

Decidi escrever essas linhas para me aproximar daqueles que amo e que não mais tornarei a ver. Procurei papel e caneta pelos escombros, e com estas memórias passarei meus últimos momentos, da mesma forma que outras pessoas ao redor do mundo esperam deixar a marca de que um dia existiram, sem, contudo, acreditar em uma posteridade.

Assim como fomos acostumados a imaginar, também achei que o fim dos tempos aconteceria sob a forma de um terrível apocalipse, com anjos das trevas incendiando o mundo, uma invasão alienígena devastando a terra ou mortos-vivos devorando nossos corpos. No final das contas, a devastação foi a mesma. E poucos restaram, ao menos até aonde minha realidade alcança.

A sede, a fome e a doença são menos apocalípticas do que nossos terrores simbólicos e sempre convivemos harmoniosamente com elas, mas não imaginávamos que seus efeitos simultâneos e em larga escala seriam tão fulminantes. Enquanto ainda havia comunicação, soubemos de um vírus, uma gripe, e que providências já estavam sendo tomadas. Depois continuaram proliferando notícias desencontradas por todos os países, até que o pânico se instaurou após uma população inteira definhar até a morte aos olhos de um planeta aterrorizado. Saques, êxodo, violência, suicídio, tudo em escala global enquanto a doença viajava de avião e acabava de infectar os lugares restantes; a água também fora contaminada, e quem não morria com a doença era vítima de suas consequências. Um colapso. Os mais ricos sobreviviam mais tempo, mas nem por isso podiam escapar - a miséria era agora o sistema dominante. Logo, não tive mais notícias dos meus parentes e amigos; estávamos todos isolados em nosso próprio caos. Os dias eram passados ao abrigo das ruínas que restaram de nossas fortalezas de pedra e concreto. Alguns se juntavam; outros perambulavam sozinhos até sucumbirem ao chão das ruas, até serem varridos de vez pela crescente destruição.

Minha namorada e eu fugíamos e nos protegíamos como era possível. Mas, na verdade, não era possível. Não havia proteção, não havia cura e a salvação era uma ilusão detestável - era uma questão de tempo até que chegasse a nossa vez. Mesmo nos momentos finais de desespero, relutei em procurar pelos grupos que se escondiam e sob os quais recaia o mito da sobrevivência, sendo que na verdade o que queriam era proteger dos flagelados as últimas cotas de riqueza que os restara para viver um pouco mais do que os outros. Nunca tive medo de morrer e optei por esperar a morte com a maior tranquilidade e dignidade possíveis, sem implorar por um momento que sempre tivera o seu final previsto; se tivessem havido zumbis e extra-terrestres, permaneceria até a última bala de uma espingarda, por puro lazer, assim como eu e meu amigo fazíamos nas imaginações de nossa infância; ou no caso de anjos inquisidores, aguardaria o veredicto fatal só pela curiosidade do julgamento. No entanto, essa coragem, que não bastava de descrença, não foi forte o bastante, e tive medo quando a vi morrer. Não pela morte em si e pela solidão que me aguardava, mas pela desolação do amor: angústia, desespero, solidão, falta, todos os sentimentos reunidos como os eventos desastrosos que jogaram na cara dos homens a efemeridade humana. Minha companheira havia partido, como todos os outros que amei, e eu restava só numa vida árida, deserta, odiando a espera que não me permitia estar aonde eu desejava estar.

Foi assim que, provavelmente por um desses castigos sem razão impostos a nossas vidas, durei mais uma dúzia de intermináveis semanas, rejeitado pela doença, até que a terrível secura da sede - a única coisa que se move dentro de mim - me trouxesse essa espécie de luz agonizante e trêmula, que brilha no fundo de um calmo vazio e que me permite lembrar por alguns últimos momentos.

Não sei bem por que, mas muito antes de que essas calamidades surgissem como nosso destino definitivo, nunca consegui fazer projeções de como seria minha vida depois de 2011; e, por coincidência, dessa data em diante não pudemos resistir para assistirmos e celebrarmos juntos a mais uma copa do mundo.


3 comentários:

  1. Nossa, parece até uma carta para o "arqueólogo do futuro"!!!

    Em treinamentos corporativos sempre pedem para que você se visualize daqui há 5 anos. Escrever suas metas, objetivos, dizer onde e como você se vê daqui a 5 anos... O máximo que consigo é prever o próximo semestre.

    E sempre uso a copa do mundo para lembrar onde eu estava; nunca para adivinhar onde estarei.

    Abração!

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  2. Olás.
    Adorei os textos. Blog é cultura e acho foda a inciativa de produzir material próprio. Parabéns. Quanto ao texto gostei da idéia de projeção. Que algum arqueólogo veja esse blog em alguma garrafa à beira da praia e tire boas reflexões.

    Obs:- Estive em Pipa por 1 hora por causa de um passeio que fizemos. Quem sabe com mais tempo e grana eu possa te visitar com mais calma.
    RRRsss
    Abs

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  3. Cara, estreei um anova forma de bloguear em meu blog. rrrsss
    estou colocando dicas e sugestões afins. e comecei por um comentário do Rodrigo em seu blog.
    veja lá e contribua se quiser.
    abs

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